2005-01-12
O Paradoxo da Ditadura Democrática
Continua a discussão com o João Tunes e agora também com o Raimundo Narciso
O João Tunes tocou, assim, deliberadamente em duas instâncias da vida política e social cujo potencial de participação é vastíssimo, (se comparadas com o Parlamento e o Governo), onde a pressão e exigência populares e democráticas são mais intensas e mais urgentes. Por tudo isso, a saturação e afastamento dos cidadãos das políticas autárquicas e sindicais, vai dando lugar a alarmes, conformismos, mas também a iniciativas que deixam entrever formas mais abrangentes e menos autoritárias de dar a vez e a voz aos que, crescentemente, não se contentam com essa treta indutora de passividade de serem apenas representados.
«Chega. Voltem cá para as próximas eleições e, se ainda se lembrarem, julguem-nos com o voto (isto se não estiverem já tão fartos e descrentes que nem já se dignem a votar em branco ou nulo...).»
De facto a vida – a vida política inclusive – não pára entre eleições. Os autarcas, tal como os dirigentes e outros activistas sindicais, têm de fazer frente e encontrar soluções ou, pelo menos, saídas, para situações prementes.
É assim que, frequentemente, eleitos locais e activistas sindicais se cruzam à porta do Governado Civil, em cada distrito, à entrada da Assembleia da República ou de um Ministério qualquer.
Mas o que se passa, de facto, nas nossas autarquias locais? Como é que o sistema político municipal acompanha, em termos funcionais, o fervilhar de crises e problemas que se multiplicam?
Clonagem sistémica – os Governos Locais imitam o Governo Central
Uma das maiores perversões do nosso sistema político (tema já aqui discutido no PUXA-PALAVRA) consiste na acentuação do estilo autoritário das lideranças partidárias após a formação do Governo. O chefe do Partido ganhador, que foi a votos na qualidade de «candidato a 1º ministro», passa a concentrar, em consequência da coordenação político-partidária e do resultado das eleições, uma tripla legitimadade: chefe do partido, chefe do governo e chefe da maioria. A maioria, partidariamente gerada, tende a conformar-se com as directivas partidárias respectivas, desvalorizando a função fiscalizadora do Parlamento e dificultando ou inviabilizando, mesmo, as iniciativas das oposições nesse sentido. É o paradoxo da «ditadura democrática» e aproxima-se, de certo modo, do lema cunhado por um dirigente do PPD já ido - Sá Carneiro - «Uma maioria, um Governo e um Presidente». Como quem diz: se podemos ter o poder - democrático - todo, porquê deixar algumas partes à mercê dos outros?
Nas Autarquias Locais, apesar do método de Hondt se aplicar também à composição da instância executiva - a Câmara Municipal - uma boa parte das Assembleias Municipais acaba por funcionar como «caixa de ressonância» do partido político do presidente que detém, geralmente, a maioria na Assembleia Municipal. Os deputados municipais, na maioria dos casos, não têm condições para exercer as suas competências fiscalizadoras; a compensação pecuniária é risível e o funcionamento dos serviços de apoio é parco ou inexistente.
O que é assombroso neste estado de coisas, não advém desta descrição sucinta e necessariamente incompleta atendendo à existência de mais de 300 municípios. O que mais impressiona é o aparente nacional conformismo que nos atingiu, apesar de incessantemente advertidos para o empobrecimento geral da cultura política que as práticas descritas implicam. Apesar disso, não mexemos uma palha para alterar a situação.
O dispositivo anti-bsolutista que o espírito da modernidade legou aos sistemas democráticos sob a forma do princípio da separação dos poderes é assim fintado pelos excessos partidocráticos. O caciquismo e o autoritarismo que ainda assombram a nossa cultura política sob a forma de arcaísmos regionais, ligados ao futebol, construção civil e outros interesses menos confessáveis, resistem, deste modo, ao estímulo e à inovação que a liberdade e o confronto democrático propiciam.
Como dizia o João Tunes em conversa anterior, a vida desenvolve-se na sua totalidade e diversidade, na dinâmica gregária, das incontáveis interacções do trabalho criador ao sonho e à generosidade solidária. A vida não cabe toda na política e, é claro, ainda menos no Parlamento, no Governo ou nos Tribunais. O nosso tempo tem outros ritmos e encantamentos que os discursos racionalistas (felizmente) mal vislumbram. Mas este «paradoxo da ditadura democrática», municipalmente clonado, havia de merecer um pouco mais do que estas estranhas formas de comprazimento, passividade e frustração.
<< Home