2017-08-03
O futuro da Venezuela está em jogo
A informação que temos sobre o que se passa na
Venezuela é na sua quase totalidade a que é determinada pelos interesses
imperiais dos EUA e dos governos da UE a eles subordinados. De modo que para
contrabalançar, mesmo que minimamente, tanta desinformação interessada ou
temerosa, deixo aqui este artigo de Igor Fuser (doutor em Ciência
Política pela Universidade de São Paulo (USP), professor de Relações
Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC) e integrante do Grupo de
Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI). publicado em 30/07/2017 aqui
(Imagens: mapa da Venezuela, Simão Bolívar, manifestação de 3 milhões em Caracas de apoio a Maduro em 11/04/2013 , turbulência nas ruas contra Maduro)
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(Imagens: mapa da Venezuela, Simão Bolívar, manifestação de 3 milhões em Caracas de apoio a Maduro em 11/04/2013 , turbulência nas ruas contra Maduro)
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"Chega a ser surreal. Em nome da “democracia”, governos
de diversos países – entre eles, Estados Unidos, México, Colômbia e Panamá,
além, é claro, dos golpistas brasileiros –, acompanhados pelas empresas de
comunicação social mais influentes do mundo, se mobilizam contra a eleição de
uma Assembleia
Constituinte convocada com garantias à ampla participação da
cidadania e ao pleno exercício das liberdades políticas, de acordo com a
Constituição em vigor.
Esses supostos guardiães da liberdade mantêm silêncio
sepulcral diante da ofensiva terrorista das milícias
opositoras, que já causaram 110 mortes. Nos últimos dois meses,
grupos de jovens sob o comando dos setores mais extremistas da oposição – em
especial, o partido Vontade Popular, liderado por Leopoldo Lopez – desfecharam centenas de ataques contra pessoas
identificadas como apoiantes do governo e contra o património público, com o
objetivo de criar um cenário de caos a ponto de inviabilizar a votação da
Constituinte neste dia 30 de julho.
Centenas de prédios e equipamentos públicos foram
depredados e, em alguns casos, incendiados. Entre eles estão onibus, centros de
abastecimento popular, postos de saúde, delegacias de polícia, escolas,
quartéis, escritórios ou agências de instituições estatais como a Misión
Vivienda (o equivalente ao programa Minha Casa, Minha Vida).
A divulgação desses factos, presentes na realidade
quotidiana da Venezuela desde a convocação
da Constituinte pelo presidente
Nicolás Maduro, em 1º de maio, é sistematicamente sonegada aos leitores,
ouvintes e telespectadores dos media que manipulam a quase
totalidade daquilo que se faz passar por informação, no mundo inteiro. Em
qualquer outro lugar do planeta, tais ações violentas seriam definidas como terrorismo, mas no caso da Venezuela os responsáveis por esses crimes são louvados pelos jornalistas
estrangeiros como se fossem manifestantes “pacíficos”.
As mortes são atribuídas, de forma desonesta, às forças de
segurança, quando se sabe perfeitamente, a partir do apuramento das
circunstâncias em que morreu cada uma das pessoas atingidas pela onda de
violência, que mais de 60% dos casos fatais resultaram da ação dos grupos opositores, que usam armas de
fogo e adotaram, entre outras práticas, a de incendiar pessoas identificadas com o chavismo. Nos incidentes em que a ação policial resultou em morte ou
ferimentos, os envolvidos estão presos e respondem a processos judiciais (há ainda episódios em que não
se conseguiu identificar os responsáveis).
A manipulação da opinião pública pela comunicação social vai
muito além da ideologia – o viés classista que impregna permanentemente os
conteúdos de modo a conformar uma visão de mundo coerente com os interesses das
classes dominantes no capitalismo global. O que está em curso, no tocante à
Venezuela, é uma campanha em que as empresas de comunicação se empenham,
conscientemente, numa operação política, conduzida a partir de Washington, para
depor o governo de Maduro e substituí-lo por autoridades alinhadas com os
interesses da burguesia local e do imperialismo dos Estados Unidos.
O sucesso ou fracasso dessa estratégia golpista depende, em
grande medida, dos acontecimentos deste domingo e, em particular, da maior ou
menor afluência às urnas para a escolha da nova Constituinte. Um índice baixo
de votação agravará a crise política, fragilizando o governo diante da campanha
desestabilizadora e dos atores internos e externos nela envolvidos. Já uma
participação expressiva dos cidadãos reforçará a legitimidade do governo e
criará um firme alicerce para a instalação de uma Constituinte capaz de
enfrentar o impasse político e as gravíssimas dificuldades económicas.
Não é exagero afirmar que a Venezuela vive um dos dias mais
cruciais de sua história. O apelo às urnas para eleger uma Constituinte põe em
jogo o futuro da Revolução Bolivariana, como foi chamado o amplo projeto de
mudança política e social iniciado com a eleição de Hugo
Chávez à presidência da Venezuela, em dezembro de 1998. Em
quinze anos à frente do governo, Chávez inverteu as
prioridades do Estado, ao afastar do poder as tradicionais elites económicas
ligadas aos interesses externos. A maior parte da renda do petróleo passou a
ser aplicada em benefício da maioria desfavorecida. Milhões de venezuelanos ganharam acesso a serviços de
saúde adequados, por meio de uma rede imensa de postos de atendimento instalados nas áreas mais pobres
e operados por médicos e outros profissionais cubanos, a Misión Barrio Adentro.
O analfabetismo foi erradicado e a rede de ensino público em todos os níveis, inclusive o
universitário, ampliou-se em tal escala que hoje a Venezuela é o país do mundo com mais estudantes no ensino
superior, em proporção ao número de seus habitantes. Para enfrentar o défice habitacional, já foram entregues
mais de
1,7 milhão de moradias a famílias de baixa renda, mediante pagamentos
simbólicos, compatíveis com sua condição económica.
Os idosos conquistaram o direito a uma reforma digna, os
salários reais elevaram-se significativamente e a participação popular nas decisões sobre gastos públicos tornou -se prática quotidiana em milhares de conselhos
comunitários espalhados pelo país inteiro. Tudo isso, em um contexto de plena democracia. A imprensa funciona
livremente e em nenhum outro país do mundo se realizaram tantas eleições e
consultas à população.
Todas essas conquistas (e muitas mais) estão ameaçadas no
cenário de incerteza política que envolve a eleição da Constituinte. Em quase
duas décadas de chavismo, a Revolução Bolivariana superou todas as tentativas
das elites dominantes de recuperar seus privilégios, por meios legais e ilegais.
Nas urnas, o chavismo saiu vencedor em quase todas as
ocasiões. A via golpista foi derrotada em 2002, quando a direita política,
apoiada por uma parcela das Forças Armadas e pelo aparato mediático, tomou de assalto o palácio de Miraflores, sob a benção dos EUA, e chegou a levar preso o presidente
Chávez. Mas o golpe fracassou diante da resistência da população mais pobre e
da lealdade da maioria dos militares, e Chávez regressou à presidência em
apenas três dias, nos braços do povo.
A morte
do presidente, em 2013, e a queda dos preços do petróleo – produto do
qual a economia do país é altamente dependente desde o início do século passado
– encorajaram os opositores de dentro e de fora da Venezuela. Para a elite
dominante dos EUA, é inaceitável a consolidação de um governo de esquerda na
América do Sul (seu tradicional “quintal”) comprometido com a soberania
nacional, o controle estatal dos recursos naturais e a aplicação de
políticas públicas voltadas para a superação das desigualdades sociais, na contramão do neoliberalismo.
Intensificou-se então a chamada “guerra económica”, ou seja,
a utilização dos recursos de poder à disposição da burguesia venezuelana para
provocar a inflação dos preços, a crise cambial e escassez de mercadorias
essenciais, como alimentos, remédios e peças de reposição para automóveis. A sabotagem empresarial somou-se às dificuldades decorrentes
da redução da renda do petróleo e aos graves erros de
gestão governamental para gerar uma situação
de crescente desconforto entre a população, angustiada com a alta dos preços e com as longas horas de fila
necessárias para conseguir os produtos básicos do dia a dia.
Nesse cenário, a oposição reunida na Mesa de Unidade
Democrática (MUD) alcançou, em dezembro de 2015, a sua primeira vitória
eleitoral, ao obter 56% dos votos para a Assembleia Nacional, o parlamento
venezuelano, o que (pelo sistema de voto distrital) representou a conquista de
quase dois terços das cadeiras. Se os líderes da MUD
estivessem dispostos a atuar de acordo com as regras do jogo democrático,
usariam o domínio do Legislativo para impulsionar suas próprias propostas de
superação da crise, acumulando forças para disputar, com chances, as eleições
presidenciais de 2019. Mas, sem nada de concreto a propor, optaram pelo caminho
insurrecional, de olho na conquista imediata do poder.
Essa aventura já tinha sido tentada em 2014, com a ofensiva
de ações violentas denominada por eles como “A Saída”, que fracassou após
deixar o saldo trágico de 43 mortes e danos
materiais incalculáveis. Agora, diante do cenário económico desfavorável, a direita
se sente mais fortalecida, e a disposição de Washington em intervir na política
interna venezuelana mostra-se mais efetiva.
O Legislativo declarou guerra ao Executivo e foi colocado
fora da lei pelo Judiciário, diante da recusa da liderança da MUD em aceitar a
impugnação de três deputados por conta de fraudes na eleição de 2015. O avanço das forças de direita em dois países vizinhos, Argentina e Brasil, viabilizou uma
ofensiva diplomática para isolar a Venezuela e fragilizar ainda mais o seu governo. Enquanto isso, no plano
interno, a guerra económica atingiu o auge com a recusa de grande parte das empresas privadas em produzir, o que agravou o problema do abastecimento.
Contra ventos e marés, a Revolução Bolivariana resiste. Uma
parcela significativa da população mantém sua fidelidade ao chavismo,
consciente do terrível retrocesso político e social que significaria a
derrubada do governo de Maduro e a tomada do poder por uma elite fascista,
violenta, com sangue nos olhos, sedenta por vingança e pela recuperação dos
privilégios perdidos. No plano externo, a
ação concertada dos lacaios de Washington, como o argentino Mauricio Macri, o brasileiro Michel Temer e o
mexicano Enrique Peña Nieto, fracassou até agora na
tentativa de excluir a Venezuela do Mercosul e de aprovar, na Organização dos
Estados Americanos (OEA), alguma resolução que signifique carta branca ao
golpismo e à intervenção estrangeira.
As bases populares do chavismo estão mobilizadas no
enfrentamento à crise econômica, articulando os Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAPs), até agora
bem-sucedidos em fornecer a milhões de famílias mais necessitadas uma cesta de
alimentos básicos vendidos a preços justos, evitando um colapso humanitário. E as Forças Armadas permanecem leais à Constituição, rejeitando
a tentação do golpismo.
A proposta
da Constituinte surgiu, nesse
contexto, como meio de encontrar uma solução pacífica, democrática, em que o
verdadeiro soberano – o povo – possa assumir em suas próprias mãos o controle
das instituições políticas e definir os caminhos do futuro. É uma tentativa legítima, rigorosamente fundamentada na
Constituição, de preservar os avanços sociais da Revolução Bolivariana e
de impedir que a atual situação de confronto político degenere em uma guerra
civil que, certamente, seria acompanhada de intervenção estrangeira direta. Se
vai dar certo, ninguém sabe. "