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2020-03-25

 

ANNA NETREBKO


Anna Netrebko é uma das mais famosas soprano da actualidade. Nasceu em Krasnodar, Rússia, em 1971.
Enquanto estudava no Conservatório de São Petersburgo, trabalhou como empregada de limpeza no Teatro Mariinsky, onde assistia gratuitamente aos ensaios de ópera. Mais tarde fez uma audição no teatro, onde o maestro Valery Gergiev a viu e tornou-se seu mentor vocal.



Anna estreou-se no Teatro Mariinsky aos 22 anos, interpretando o papel principal de Susanna em As Noites de Fígaro de Mozart. Um ano depois, assumiu o papel de Rainha da Noite na Flauta Mágica, sob o maestro David Milnes.
Estreou-se nos Estados Unidos alguns anos mais tarde, em 1995, quando Gergiev a elegeu como protagonista de uma produção da Ópera de São Francisco de Russlan e Lyudmila de Glinka. Continuou a cantar regularmente com a Ópera de São Francisco, principalmente em papéis russos e italianos.
Anna tem agora dupla cidadania russa e austríaca e tem casas em Viena, Áustria e Nova Iorque.
É uma soprano premiada.
Descrita como 'Audrey Hepburn com uma voz', o som bonito, escuro e distinto de Anna Netrebko, aliado à sua elegante e sedutora presença em palco, conquistou a aclamação popular e crítica em todo o mundo.
Em 2003, Anna foi nomeada A Cantora Feminina do Ano de Opernwelt. Um ano depois, foi-lhe atribuído o Prémio estatal da Federação Russa.
A revista Musical América a chamou de "uma verdadeira superestrela para o século XXI", nomeando-a o seu Músico do Ano, em 2008.
Em 2017, o governo austríaco nomeou-a Kammersängerin ('cantora de câmara'), um título honorário reservado aos maiores cantores clássicos e operáticos.

2020-03-16

 

CORONAVÍRUS visto por JORGE BUESCU

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JORGE BUESCU  (físico/matemático português) :
“Evitei até hoje pronunciar-me sobre este assunto; mas chegados à situação actual, acho que é uma questão de serviço cívico enquanto matemático.

O gráfico, que consta de um site de Johns Hopkins que acompanha a situação do coronavirus em tempo real [ LINK ]e que recomendo a todos que descarreguem para o telemóvel, compara o número de infecções por coronavírus na China (laranja) e resto do Mundo (amarelo) com os casos de recuperação. À data de hoje (1/3/2020) há 42.600 recuperados, de um total de 87.000 casos identificados. Devemos ficar preocupados? Não, pelo contrário. Devemos ficar muito tranquilizados. Note-se que a curva dos recuperados acompanha perfeitamente a das infecções, com um tempo de latência de 3-4 semanas. O número de recuperados hoje, 1/3/2020, é igual ao total de infectados em todo o Mundo em 10/2/2020. A taxa de recuperação para os casos de infecção registados em Fevereiro é superior a 99%.

Para ganhar sensibilidade para a evolução da doença, transcrevo os números em bruto. I é o número de infectados, R de recuperados.
                                             22 Jan:             I = 547             R=28
                                             29 Jan:             I = 7.700          R=133
                                               5 Fev:            I= 20.000         R= 1.100
                                             12 Fev :           I=50.200          R= 5.200
                                             19 Fev:            I=75.700          R= 16.100
                                             26 Fev:            I=81.000          R= 30.400
                                               1 Mar (hoje): I=87.000          R=42.600
Ou seja, em Janeiro quase não havia recuperados; hoje mais de metade do total de infectados já recuperou. Num mês, o número de recuperados cresceu por um factor de 300. Curiosamente, nunca vi estes números referidos na imprensa, mais preocupada com visões do apocalipse.
 


Universidade Johns Hopkins - Baltimore EUA

Estamos pois a braços de uma virose essencialmente inócua (mais pormenores abaixo), com um período de recuperação de 3-4 semanas, após o qual, de acordo com os melhores números actuais, 99,3% dos infectados recuperam sem complicações.

Do ponto de vista da saúde pública
, a questão colocada pelo COVID-19 é apenas a sua elevadíssima taxa de contágio. A OMS estima um valor de R_0, grandeza que nos modelos matemáticos SIR (Susceptíveis-Infectados-Recuperados) determina a taxa de propagação exponencial, de 2,3. Para comparação, a gripe sazonal tem R_0=1.3, propagando-se de forma muito mais lenta. Para saber mais sobre o que isto quer dizer e sobre os modelos matemáticos de epidemiologia veja-se por exemplo (2) ou (3)

Por outro lado, os números mostram que se trata de uma virose essencialmente inócua: o período de recuperação é de 3-4 semanas, após o qual 99,3% dos infectados estão recuperados. A estimativa actual da OMS para a taxa de mortalidade para casos surgidos depois de 1 de Fevereiro, portanto depois do surto inicial, é actualmente de 0,7% (4) Esta é mais baixa do que a da gripe sazonal, que é de 1%. Como termo de comparação, o vírus Ébola tem uma taxa de mortalidade próxima dos 50%.

A virose em si não é complicada; um dos maiores virologistas espanhóis e Presidente da Sociedade Espanhola de Virologia, José Antonio Lopez Guerrero, descreve-o como “mais do que um catarro, menos do que uma gripe” (5). 80% dos casos são assintomáticos ou têm sintomas muito leves. Apenas em 5% dos casos existem complicações graves, na sua grande maioria em grupos de risco: por exemplo, pessoas com bronquites crónicas, DPOC ou sistema imunitário estruturalmente enfraquecido como doentes oncológicos. São essas pessoas que podem estar em perigo – tal como estariam, com o mesmo nível de risco, se contraíssem uma gripe comum.

O coronavírus já está em Portugal, isso é uma inevitabilidade cósmica. Isso é preocupante? Não particularmente, a menos que se pertença ou se esteja em contacto próximo com um grupo de risco. Como descrevi acima, ele é menos perigoso do que uma gripe. Mas, tal como alguém com uma gripe toma precauções para não a passar, também aqui essas precauções devem ser tomadas, de forma mais drástica divido à altíssima taxa de contágio.

Se o coronavírus servir para implantar socialmente comportamentos como lavar mãos frequentemente ou não espirrar para o ar, tanto melhor. Podemos ter de cancelar algumas viagens de avião, como aconteceu comigo, mas vamos viver a vida normalmente. De resto, não há qualquer motivo para pânico ou sentimentos de apocalipse, apesar da desinformação constante e do alarmismo mediático a que assistimos diariamente – esse sim, o mais perigoso vírus de toda esta história.

(1) https://gisanddata.maps.arcgis.com/.../opsd.../index.html...
(2) http://maddmaths.simai.eu/.../focus/epidemie-matematica/...
(3) https://triplebyte.com/blog/modeling-infectious-diseases.
(4) https://www.who.int/.../who-china-joint-mission-on-covid...
(5) https://elcultural.com/covid-19-mas-que-un-catarro-menos... "


 

Escravatura em Portugal no xec XXI

Como é possível tudo isto? Em Portugal! No século XXI !

"São mãe e filha, portuguesas. Foram escravas 11 anos. Aqui, ao nosso lado [região de Bragança]. Depois de quase uma década à espera de justiçaviram os criminosos condenados. A liberdade começa agora"
[A notícia é do Expresso de 14/03/2020 - pág. 18 e 19]

Mãe, porque é que fomos escravas?
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Maria, a mãe, e Joana, a filha, tentam recuperar o vínculo familiar que os traficantes cortaram
TEXTO ANA SOFIA FONSECA FOTO RUI DUARTE SILVA
Joana não despe o casaco de ganga. Está frio no Tribunal de Bragança e a ansiedade congela-lhe as mãos. A leitura do acórdão está marcada para a tarde de 27 de fevereiro. Falta meia hora. Será que é hoje? A dúvida consome. Anda há nove anos à espera de justiça e não seria a primeira vez que a sentença acabava adiada. Ainda há um par de meses moeu o passado três madrugadas inteiras.
Pediu ao patrão o dia de folga e mentalizou-se para ouvir o veredicto. Agora, outra vez a mesma saga. “E se não forem condenados?”, pergunta a si mesma. Sentada ao seu lado, a mãe ajeita os óculos como quem afasta fantasmas. Têm medo de encontrar os arguidos. Como é que se olha nos olhos de quem agiu como se fosse “nosso dono”? Durante quase 12 anos foram propriedade de uma família. Vítimas de tráfico de seres humanos e escravidão. Em pleno século XXI, o tráfico de pessoas é um negócio comparável ao tráfico de droga e de armas, desconhece fronteiras e movimenta mais de €130 mil milhões. Está quase na hora de pisarem a sala de audiências, os nervos maiores do que mãe e filha. Como é que se encara quem nos negou o direito de ser pessoa? Eu cresci escrava”, suspira Joana. Em cativeiro dos dois aos 14 anos: “Roubaram-me a infância.”

Meses antes, dezembro de 2019. A árvore de Natal pronta e a mesma certeza: há estações que não voltam. Joana tem 22 anos, o olhar tão forte quanto frágil: “Se não me tivessem tirado a infância, podia ser uma adulta diferente.” Sonha ser educadora, encher crianças de sorrisos. Enquanto esteve sob domínio dos traficantes, estudou até à 4.ª classe. Tinha a lição bem estudada: nunca falar da mãe, jamais contar o que vivia. Antes de sair para a escola, fazia as camas. À noite, lavava as casas de banho. Quando a família teve mais uma criança, foi retirada do ensino: “Passei a cuidar do bebé o dia inteiro.

A memória é má companhia, sempre as mãos congeladas de ansiedade. Pudesse ela esquecer e já o teria feito, mas não há como apagar de onde se vem. Foi traficada em Portugal, por uma família portuguesa. Sempre que desagradava aos traficantes, era arrastada para um quarto ou despida no quintal: “Batiam-me a sério e no inverno davam-me banho com uma mangueira de água gelada.” As lágrimas ardem no rosto: “Não podia brincar, não podia fazer nada.” Mas o pior, o pior de tudo, era ver a mãe ser “espancada”. Ouvir os gritos e não poder acudir.
Em cada quatro vítimas, uma é criança. Em 2018, o Observatório de Tráfico de Ser Humanos deu conta de 29 vítimas menores
Maria escuta a filha, os óculos embaciados de dor. O sorriso nervoso que nunca a abandona. Sabe bem o que é apanhar com um chicote marinho, ver o rosto esmurrado, a barriga negra de pancada. Mas nada dói mais do que saber uma filha maltratada e ter de baixar os olhos. Partir um prato e adivinhar a criança castigada no seu lugar: “Só para me magoarem.” Para controlarem. Mas quando se é “menos que um animal”, o abismo nunca tem fundo. O mais atroz começou na primeira noite: Tiraram a minha filha de perto de mim e disseram que ela nunca mais me podia chamar mãe. Puseram-na a dormir com outra mulher, que estava ali como eu.” Atira o olhar para o chão: “Eu não pude ser mãe e a minha filha estava ali.” Assim foi. Durante quase 12 anos, mãe e filha a poucos metros de distância, sem quase trocar verbo. Lado a lado e impedidas de ser mais do que estranhas. Joana remói a maldade que lhe calhou: “Não sei porque é que nos fizeram isto, porque é que não queriam que eu tivesse afeto pela minha mãe.” Desde as primeiras frases, a miúda ensinada a tratar os traficantes por avós e tios. O tratamento familiar afastava suspeitas e a desvinculação reduzia ainda mais as vítimas.
Tudo começou naquela tarde de 2000, em que uma carrinha apareceu na aldeia de Maria a oferecer trabalho na agricultura, boa remuneração, casa e comida. Sem eira nem beira, a mulher fez fé na promessa de melhores dias: “Disse-lhes que tinha uma filha pequena, mas eles disseram que fosse buscar a menina e trouxesse os documentos.” Foi por uma semana, ficou praticamente 12 anos. A trabalhar de sol a sol, sem uma única folga, sem receber um cêntimo. Num vaivém entre Portugal e Espanha, ao ritmo dos trabalhos agrícolas — vindimas, poda, apanha de fruta e de azeitona. À noite e de madrugada a lida da casa dos traficantes. “Comíamos as sobras deles ou conservas.”
Tiraram-lhe os documentos, o telemóvel. Da única vez que pediu para ir a casa, jurou a si mesma nunca mais abrir a boca: “Deram-me uma tareia tão grande... E ameaçaram que se tentasse fugir nunca mais via a minha filha.” Não se sabia escrava, tão-pouco vítima: “Eu só soube o que isso era depois de a polícia nos tirar de lá.” O retrato de Maria é o da maioria das vítimas, mais de 40 milhões, contabiliza a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Os traficantes preferem pessoas vulneráveis, com famílias desestruturadas, baixa escolaridade, graves situações financeiras e sociais, problemas de dependência ou cognitivos. Homens e mulheres fáceis de enganar e coagir. Em cada quatro vítimas, uma é criança. Por cá, em 2018, o Observatório de Tráfico de Seres Humanos (OTSH) deu conta de 29 vítimas menores sinalizadas.
UM URSO AZUL, A PRIMEIRA PRENDA DE NATAL
Em casa, Joana já tem as luzes da árvore de Natal acesas. O gosto das filhós e o prazer de um presente são ganhos da liberdade. Guarda até hoje o peluche azul que recebeu, no primeiro Natal, na casa-abrigo. Em rigor, até então nunca desembrulhara sequer um carinho. Por essas e por outras, mãe e filha não saem da ideia de Sebastião Sousa, inspetor-chefe da Polícia Judiciária do Norte, responsável pela equipa que investiga crimes de tráfico de seres humanos: “Temos tido muitos casos e estas vítimas estão sempre no fundo da cadeia humana, mas este é diferente... Havia uma desumanização total.” Lembra-se como se fosse hoje da manhã de novembro de 2011, em que entrou porta adentro da casa dos agressores. As vítimas trancadas à chave, “desde as seis e meia a limparem a casa, enquanto os traficantes descansavam”. Maria e outras duas vítimas dormiam no chão de um anexo, a miúda aos pés dos traficantes. No primeiro interrogatório, deu-se conta de que “a menina não sabia chamar mãe à mãe”, de que a mãe “nunca tinha tido na mão uma nota de euro, moeda que entrara em circulação há já nove anos”.
Sebastião Sousa, inspetor da PJ, não tem dúvidas: “A violação é um método de controlo que destitui a vítima de autodeterminação”
O passado é passaporte para o presente. Casos de portugueses traficados para exploração laboral, quase sempre por famílias que atuam como redes organizadas, continuam a chegar à Polícia Judiciária, órgão de polícia criminal que, a par do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, investiga o crime de tráfico de pessoas. 
O Global Slavery Index estima 26 mil vítimas em Portugal. O inspetor traz o crime estudado: “É altamente rentável, a mão de obra não só é gratuita como dá lucro. Por outro lado, é mais difícil de provar. No tráfico de droga, se encontrar um quilo, a prova está feita; no de seres humanos, a pessoa está na posse do traficante mas tem medo de o denunciar e o criminoso costuma alegar que está apenas a ajudar, que dá casa e comida.” O OTSH faz contas às vítimas sinalizadas. Em 2018, 45% das vítimas foram homens, 24% mulheres e 14% menores. A maioria para exploração laboral. Uma realidade que aparenta ser diferente do resto do mundo. A OIT afiança que 71% das vítimas são mulheres (dados de 2017), a grande maioria para fins sexuais. Mas os números estão longe de contar a história toda. Por cá, a investigação parece mais voltada para a exploração laboral, onde numa só operação tendem a ser sinalizadas mais vítimas do que na exploração sexual.
Mãe e filha pouco sabem destas cifras, mas conhecem tudo sobre as vidas que espelham. Maria tem o cabelo curto, Joana até ao peito. Caminham lado a lado na tarde chuvosa. Há enfeites de Natal no céu da cidade, gente no corrupio das compras. São mãe e filha, mas até há pouco esse era laço difícil de sentir. Marta Pereira, coordenadora do Centro de Acolhimento e Proteção da Associação para o Planeamento da Família (APF), não esquece o dia em que as recebeu na casa-abrigo. Vinham sujas, aterrorizadas, “sem perceber o que estava a acontecer”. Durante mais de um ano, pesadelos de madrugada e o desejo de serem realmente família a ocupar os dias: “Foi preciso resgatar o vínculo entre mãe e filha. A Joana já tinha 14 anos e não conhecia outra vida, foi difícil deixar de chamar avó e aprender a dizer mãe. Com o tempo, tornaram-se muito cúmplices, mas foi um processo dilacerante.”
VÍTIMAS À VISTA DE TODOS
A história continua a impressionar a responsável pela casa-abrigo: “Como é que foram exploradas durante tanto tempo e à vista de todos? Não estavam numa jaula, houve muita gente que viu e não quis ver.” Viviam num bairro social, Joana frequentou a escola. “Nenhum professor achou estranho? Nenhuma assistente social, nenhum vizinho... ninguém viu o sofrimento destas pessoas?” Joana recebia abono de família e Maria tinha contas no banco em seu nome. Mas todo o dinheiro tinha caminho certo — a bolsa dos traficantes. Maria deixa escapar um suspiro. Demorou até que alguém olhasse para ela e para a filha, mas um dia um médico e uma enfermeira incomodaram-se com o medo cravado no seu olhar.
“Não podia brincar, não podia fazer nada.” Mas o pior, o pior de tudo, era
 ver a mãe ser “espancada”. Ouvir os gritos e não poder acudir
Esse dia é ferida aberta na memória de Maria: “Levaram-me ao hospital para abortar.” Tinha o corpo amassado de pancada, a boca tapada de medo. “Fui violada e engravidei.” Violada pelo marido de uma das traficantes. No hospital de Bragança, a mulher e a sogra do violador não a perdem de vista. Respondem por ela às perguntas da enfermeira, recusam deixá-la a sós com o médico. Maria não tem coragem para pedir socorro — a filha estava em casa com o restante clã. Desde que engravidara, o calvário tornara-se ainda pior. Aos maus-tratos habituais somava-se a raiva das mulheres da casa que a culpabilizavam pela violação. Acabaram por arrastá-la para Espanha, onde foi obrigada a abortar. Estava grávida de 24 semanas. Enquanto recupera, a filha é levada para o campo, a jorna inteira a trabalhar como gente grande. Sebastião Sousa, o inspetor da Polícia Judiciária, não tem dúvidas: “A violação é um método de controlo que destitui a vítima de autodeterminação, retirando-lhe até o poder sobre o seu corpo.”
Anos antes, outubro de 2013. Estamos num quarto, Maria caminha insegura. Mais silêncios do que palavras. Acabou de sair da casa-abrigo, pela primeira vez tem uma casa e uma filha para cuidar. Está a acostumar-se à liberdade, mas tantos anos de clausura vincaram ainda mais as suas vulnerabilidades. Violação é crime que só conseguirá pronunciar anos mais tarde. O pé nervoso na alcatifa: “Obrigaram-me a uma aventura.” Também na audição para memória futura pouco contara. Quando não se conhece outra vida e se tem medo de regressar para os agressores, o silêncio parece o menos perigoso.
Final de fevereiro de 2019, Tribunal de Bragança. A leitura da sentença está a começar. Joana fecha-se no casaco de ganga. Os nervos e a raiva tomam-lhe os gestos. Entram na sala de audiências. Os arguidos já lá estão, voltam-se na sua direção. Joana aperta a mão da mãe com força. Reconhece-lhes o olhar, há dores que a memória não apaga. Hoje, olha-os de frente pela primeira vez: “Não podia mostrar medo, para a minha mãe não ficar ainda pior.” Passos trémulos no tribunal. Este é o momento por que esperou a vida inteira. Para estar aqui teve de se despedir. O patrão recusou dar-lhe folga, tal como não permitia as férias estipuladas no contrato. Este é o momento da libertação plena: “Nunca mais vou abdicar dos meus direitos e não vou deixar que façam a minha mãe abdicar.”
Os principais arguidos foram condenados, com penas entre oito e oito anos e meio de prisão. Mãe e filha renascem em lágrimas

Sentam-se nos bancos do tribunal. O processo vem de longe, até para pedir justiça é preciso condições. Sem alguém que as defendesse, deixaram os prazos passar. Não foram constituídas assistentes nem pediram a tempo a indemnização prevista para as vítimas. “Quando pegámos no caso, já não era possível. Além disso, as audiências acontecem em Bragança, é bastante dispendioso estarmos sempre presentes”, conta Manuela Nunes, advogada pro bono de Maria. E continua: “Espero que o Ministério Público ou o juiz decrete uma indemnização.” O desejo não se concretizou. “Foi um processo anormalmente moroso”, considera o inspetor da Polícia Judiciária. Não foi possível contactar a defesa dos arguidos, até à hora de fecho desta edição .
O frio parece ter desaparecido do tribunal. Joana passa o processo a pente fino. O que mais gostava era de ter tido voz no julgamento: “Só ouviram a declaração para memória futura que dei quando fui libertada. Eu era uma miúda e não conhecia outra realidade. Não tinha noção de tudo o que me tinham feito.” A leitura do acórdão é o virar da página. Mãe e filha apertam as mãos com a força de duas décadas presas ao caso, a vida à flor da pele. Cruzam os dedos para “puxar a sorte”. A condenação. “E a sorte veio.” Os principais arguidos foram condenados, com penas entre oito e oito anos e meio de prisão. Mãe e filha renascem em lágrimas. Abraçam-se. “Foi bom, tão bom...”, diz Joana. Pela primeira vez, choram de alegria. Esta noite,
Joana esquece a pergunta que há muito a atormenta: “Mãe, porque é que fomos escravas?” A resposta é o futuro.
Por razões de segurança e ética, os nomes das vítimas foram alterados.

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2020-03-08

 

A ARA na BA3 em Tancos... há 49 anos.


Era 8 de Março e também domingo há 49 anos. 

Domingo, 8 de Março de 1971, ainda estamos aqui neste apartamento no cruzamento da Av de Roma/Av EUA a rever todos os movimentos, todos os cuidados, a rever toda a matéria. Daqui a pouco partimos para a Base Aérea 3, em Tancos. Eu levo o Volkswagen "Carocha" com as 20 cargas explosivas e incendiárias até para lá da ponte da Chamusca e depois trocamos de carro. Coutinho que tem carta de condução levará o "Carro do Povo" bem carregado e eu volto com o seu já veterano Opel Record verde até à estação de Santarém onde os aguardarei. Se voltarem... Sim, hão-de voltar!

O Ângelo de Sousa era miliciano a tirar o curso de piloto de helicópteros na BA3 e à Porta de Armas do quartel, regressando do fim de semana, disse ao sargento de serviço à entrada, "vamos ali ao bar que aqui o nosso alferes (é o Coutinho, jornalista do Século, fardado de oficial da Força Aérea) deu-me boleia." O António João Eusébio estucador da construção civil o terceiro operacional desta arrojada aventura, ia vestido de soldado da Força Aérea e não precisou de dizer nada. 

Regressaram atrasadíssimos à estação de Santarém onde eu os esperava - desesperava com o atraso para além de todo o previsto e atirava para longe a tormenta de maus pressentimentos.

Eis o que diz José Pedro Castanheira no texto e António Pedro Ferreira mostra na fotografia, no Expresso









""Às primeiras horas do dia 8 de Março de 1971, uma sequência de mais de 20 explosões destruiu o principal hangar da Base Aérea n.º 3, em Tancos, no coração do maior polígono militar do país. No interior estavam 28 aviões e helicópteros da Força Aérea, que ficaram praticamente destruídos. A espetacular sabotagem – a maior perpetrada em território nacional contra as guerras coloniais em Angola, Moçambique e Guiné – foi conduzida por um comando clandestino da ARA, a Acção Revolucionária Armada, o braço guerrilheiro do PCP."
_______________________
Segue-se documento "secreto" reproduzido no livro ARA obtido por mim na Torre do Tombo, nos arquivos da PIDE, quando prepararei o livro



Após a montagem dos explosivos e cargas incendiárias nos aviões e helicópteros que serviam nomeadamente de treino para os pilotos que seguiam para a guerra colonial os nosso "aviadores" voltaram a sair pela porta de armas batendo a pala (continência) ao oficial e reuniram-se comigo em Santarém. Regressámos a Lisboa e o Ângelo de Sousa, que assim desertava, refugiou-se no apartamento acima referido na Av Roma/Av EUA, até ser encaminhado clandestinamente para Paris de onde mais tarde voltou com a sua namorada  Fernanda Castro para a luta clandestina contra o fascismo salazarista do "Botas".
Com o 25 de Abril casaram e tiveram umas filhas lindas, a Sara, a Raquel e a Rute. Tudo nomes bíblicos explicava-me ele
O Ângelo de Sousa foi a peça chave desta acção. No nosso encontro no Bairro Azul em Lisboa um mês antes da sabotagem disse-me: o quarteleiro empresta a chave do hangar a oficiais e sargentos que vão lá roubar gasolina dos aviões para os seus carros, ao fim de semana. Mas não tens carro! advertia-o eu. Mas eu digo que é para o carro do meu colega Ferreira.
Trouxe a chave num fim de semana fiz um molde em sabão amolecido e fiz um chave que o Ângelo depois testou com êxito.
Enquanto não partiu a salto para Paris frequentava-lhe o partamento levando-lhe as necessárias vitualhas apesar de o local não ser nada adequado para ser frequentado por clandestinos mas foi o que o Vasco, meu ex-colega do IST, me arranjou.

A PIDE desesperada e necessitando apresentar serviço acusou e prendeu um sargento só porque na investigação descobriu que residia próximo da casa do Ângelo, em Espinho:
Eis como descrevo o caso no livro ARA a páginas 152 e seguintes:

Sargento inocente preso e expulso das Forças Armadas


" Depois da sabotagem de Tancos a PIDE/DGS distribuiu milhares de fotografias do Ângelo de Sousa por todos os postos da Guarda Fiscal, pelas esquadras da PSP e postos da GNR. Enraivecida e necessitando de mostrar serviço fez prisões ao acaso. Uma delas foi a do sargento de Infantaria do quadro permanente Óscar Soares que não conhecia o Ângelo mas tinha o azar de morar em Espinho próximo da sua residência e além disso frequentou um curso de explosivos na Escola Prática de Engenharia, em Tancos, ali bem ao lado da Base Aérea 3. 
... O sargento Soares fazia anos, trinta e um anos exactamente e resolveu pedir cinco dias de licença a que tinha direito. Meteu-¬se no seu carro a caminho de Tomar onde tinha marcado revisão para ele na Auto-Tomar, Lda. Foi então ao chegar ao Entroncamento que o dia, em vez de se revelar comemorativo e feliz se revelou fatídico. Quase teve um acidente ao atravessar-se-lhe, com uma travagem brusca, na estrada à sua frente a grande velocidade, um carro donde saíram a correr dois bandidos de pistola em punho que num ápice lhas apontavam à cabeça. Bandidos, pensou ele. Quando se identificaram como agentes da PIDE/DGS pensou estar a salvo logo que verificassem que ele era um sargento do exército e confirmassem o equívoco. Estupefacto viu que isso nada remediou. 

«Embora me tivesse identificado fui logo ameaçado com dois tiros na cabeça pelo chefe de brigada… Disse que tinha ordens do meu comando para me levar para Lisboa. Fui empurrado para o fundo de um Morris 1300 branco sendo logo despojado do que levava nos bolsos. Ao chegar à sede da DGS, puseram-me nu, sofrendo vexames na minha dignidade pessoal e ameaças de espancamento começando logo o interrogatório sobre um indivíduo de nome Ângelo de Sousa que desconheço… Passei assim três dias e três noites sem interrupção, sem ser consentido qualquer descanso, sempre ameaçado e enxovalhado nomeadamente pelo inspector Pires.» Foi com estas palavras que o sargento Soares fez, tempos depois, uma exposição ao general Arnaldo Schultz, então director do Instituto de Altos Estudos Militares.

O general era conhecido de um dos seus familiares mas apesar de ser um dos duros do regime pouco lhe pôde valer. É nessa mesma exposição que o jovem e inocente sargento relata: 

«Depois fui transferido para o Forte de Caxias e de seguida para prisão militar, o Forte da Trafaria. Ao fim de dois dias entregaram-me de novo à DGS, que afirmou ter ordens do senhor Chefe de Estado Maior para ser levado à civil tendo entrado de novo naquele Organismo para novo interrogatório e tortura do sono por mais quatro dias e noites. Findo este período de tortura fui para o reduto Norte do Forte de Caxias em regime de rigoroso isolamento durante dois meses.» 

Queixa-se na exposição ao general de não lhe terem deixado nenhum objecto pessoal, de não lhe autorizarem correspondência, nem visitas da família, nem… oh cândida ingenuidade «não o terem informado dos seus direitos»!!! e mais um rol de coisas que justamente o indignavam e surpreendiam mas eram triviais para quem andava à «chuva», àquela chuva! A que era totalmente alheio.
Já depois de ter dados suficientes para ilibar o sargento e o deixar em paz a PIDE/DGS deu ordens para ser expulso do Exército como desertor (Ordem do Exército n.º 14 de 20-05-71).

Mais tarde, depois de muitos empenhos, o sargento Soares conseguiu ser reintegrado no Exército (OE de 30 de Julho de 1971) mas o seu reingresso no quadro só foi considerado a partir de 5 de Junho. Ficou dado como desertor três meses, foi transferido de unidade, perdeu antiguidade, dificultaram-lhe a carreira. Nem o carro lhe devolveram! «Para não ser parvo e andar a confundir a PIDE/DGS!» Só depois do 25 de Abril de 1974 começou a ser feita justiça. "

2020-03-07

 

Bendito Serviço Nacional de Saúde



Artigo de opinião de Paula Alves Silva na revista Visão de 2020-02-27  aqui
" Escrevo este texto cinco meses depois da minha primeira ida a uma urgência nos Estados Unidos. Três horas dentro das urgências que resultaram em cerca de oito mil dólares.

Julgo que os relógios dos hospitais são diferentes dos restantes. Tem, penso, um compasso próprio. Mais pausado. Mais audível. Torna-se num relógio ainda mais lento quando estamos sentados durante dez horas numa cadeira da sala de urgências. Deixamos de saber se foi a doença nos entorpeceu o corpo ou desconforto da cadeira, da qual o corpo não permite levantar. Escrevo este texto cinco meses depois da minha primeira ida a uma urgência nos Estados Unidos. Escrevo esta crónica a  titulo pessoal  lembrando as vezes sem conta em que pensei naquela noite no quão perfeito é o        
imperfeito Sistema Nacional de Saúde (SNS) Português.                                   

Atirem-se as primeiras pedras ao meu perfeito, que bem sabemos não ser perfeito. Talvez deva explicar. Sabem quanto custou a entrada nas urgências do hospital onde me sentei na capital americana? Mais de três mil dólares. A entrada, sublinho. Quando finalmente, após 10 horas de espera, cheguei à dita sala de urgências olhei em redor. Havia cerca de doze camas, um médico e três enfermeiras. Não foi difícil entender porque motivo os doentes entravam a conta-gotas na urgência.
Quantas vezes pensou dentro de uma urgência quanto custa cada um dos exames que realiza, se terá ou não dinheiro para os pagar? Nos Estados Unidos seguramente muitas. O que explica por que motivo o médico tenha de explicar cada um dos procedimentos e a sua razão, permitindo ao paciente a ultima palavra. A minha conta final foi bastante explícita deste sintoma: analises ao sangue – 1200$, farmácia (em concreto, soro e um anti-inflamatório) – próximo de 400$, uma ressonância magnética – quase 4000$ e, por fim, as três horas disponibilizadas pelo médico – cerca de 500$. Três horas dentro das urgências que resultaram em cerca de oito mil dólares. Perguntei-me muitas vezes: quanto custaria uma cirurgia?

É para isso que serve o seguro de saúde, pensarão muitos. Correcto. Mas o Sistema de saúde americano é mais complexo do que se prevê. Não é apenas o seu valor. Um plano básico de saúde para uma pessoa individual em início de carreira custa pelo menos 200 dólares por mês (valor que varia de acordo com o estado em que se encontre). Razão plausível pela qual cerca de de 28 milhões de pessoas nos Estados Unidos vive sem seguro de saúde, um número que tem vindo a aumentar nos últimos anos, sobretudo com a revogação do Affordable Care Act, mais conhecida como Obamacare.
Por outro lado, lembrar que ter um seguro de saúde não é sinónimo de garantia do pagamento total de uma conta. Importa, primeiramente, recordar que é necessário criar uma espécie de plafound. Ou seja, é necessário realizar alguns pagamentos para que a conta de seguro possua dinheiro para pagar a percentagem indicada para cada especialidade. Deste modo, alguém que hoje inicia o seu seguro terá uma cobertura menor ou quase nula comparativamente com alguém que já possui um seguro há alguns anos.

Além disso, é necessário referir que a franquia tem aumentado significativamente desde 2006. Nesse ano, apenas 50% das pessoas com seguro através da empresa de trabalho tinham uma franquia. Em 2018, o número disparou para 82%. Acrescenta-se a este factor o ainda aumento do valor da franquia. Se em 2006 o valor era cerca de 600 dólares, em 2018 situava-se nos 1700, visto que as seguradoras perceberam ser mais vantajoso fazer o paciente pagar uma taxa maior pelas idas ao médico ou ao hospital do que pagar um valor maior mensalmente.

Resultado? Milhares de processos feitos por hospitais contra pacientes que não conseguem pagar as suas dívidas. De notar que os programas de ajuda financeira dos hospitais apoiam apenas pessoas com salários anuais ate 400% acima do limiar de pobreza, isto é pessoas com salários anuais que rondem os 50 mil dólares [valores baixos para o custo de vida nos Estados Unidos].
A complexidade e o custo de um seguro tornou os Estados Unidos num país onde pessoas que caem na rua e precisam de assistências hospital recusam uma ambulância, porque o custo do transporte em ambulância em Washington DC, por exemplo, é 2500 dólares.

Por isso, perdoem-me, mas, sim, bendito SNS, pensei eu, recordando as idas ao hospital em Portugal, onde não esperei 10 horas (apesar de saber que acontece) e cujo atendimento em nada ficou a dever ao que recebi num dos hospitais da primeira potência mundial. Bendito Portugal pequenino que, apesar de não figurar nos tops das economias mundiais, percebe a importância de um estado social. Bendito SNS que apesar das suas grandes lacunas e das suas fragilidades não faz com que o paciente se questione se tem dinheiro antes de chamar uma tão necessária ambulância. Bendito.

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2020-03-02

 

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