Há uma bandeira que une os mentores intelectuais (sic) do bolsonarismo: a luta contra o chamado “marxismo cultural”.
Essa batalha é travada com força e com vontade pelo futuro chanceler Ernesto Araújo e seu anunciado colega ministro da Educação, o colombiano Ricardo Vélez Rodriguez.
Num artigo lelé da cuca intitulado “Trump e o Ocidente”, publicado em seu blog, Araújo jura que o presidente dos EUA está salvando a civilização do “marxismo cultural globalista” ao defender a “identidade nacional, os valores familiares e a fé cristã, enquanto a Europa não o faz”.
Rodriguez não deixa por menos.
Autor de livros contra o PT, ele assina uma postagem com planos para o MEC em sua página na internet — denominada, sugestivamente, “Rocinante”. No caso, o cavalo de Dom Quixote. Ainda assim, um cavalo.
Os brasileiros, segundo Rodriguez, são “reféns de um sistema de ensino alheio às suas vidas e afinado com a tentativa de impor, à sociedade, uma doutrinação de índole cientificista e enquistada na ideologia marxista, travestida de ‘revolução cultural gramsciana’, com toda a coorte de invenções deletérias em matéria pedagógica como a educação de gênero” etc etc.
Resenhou o livro “Educação física e regime militar: Uma guerra contra o marxismo cultural”, picaretagem que alega, entre outras coisas, que “o esporte-educacional, como aquele observado nos anos de 1964 a 1985, aparece claramente com o notável intuito de formar a juventude brasileira por meio de valores supremos”.
Ambos são seguidores e indicações do “filósofo” Olavo de Carvalho, general dessa guerra contra o que ele definiu numa coluna seminal (sic) no Globo, de 2002, como “uma nova escola” que quer destruir o Ocidente.
Ela tem “influência predominante nas universidades, na mídia, no show business e nos meios editoriais”. A esquerda, mais especificamente os governos petistas, tornou-se seu arauto.
Tanto Jair quanto seus filhos papagueiam tio Olavo repetindo essa expressão sempre que julgam necessário parecer, inutilmente, inteligentes.
É um bicho papão da extrema direita no mundo.
No New York Times, Samuel Moyn, professor de Direito e História da Universidade de Yale, nos EUA, resumiu o conceito como “um meme de 100 anos de idade”, com “uma história longa e tóxica”.
“Nada disso realmente existe”, afirma, numa excelente análise.
“Mas é cada vez mais popular acusar os efeitos nefastos do marxismo cultural na sociedade – e sonhar com seu violento extermínio.”
Moyn associa essa tese paranoica ao antissemitismo.
Lembra que Anders Breivik, o neonazi terrorista que matou 77 e feriu 51 num acampamento do Partido dos Trabalhadores norueguês, na ilha de Utøya, em 2011, justificou a barbárie mencionando o marxismo cultural, ameaça à “cristandade” moderna.
Destaco alguns trechos para entender em que buraco a inteligentsia bolsonaro-olavista quer atirar o Brasil:
Originalmente uma contribuição americana para a fantasmagoria do alt-right, o medo do “marxismo cultural” vem se infiltrando há anos através de esgotos globais de ódio. (…)
Em junho, Ron Paul tuitou um meme racista que empregou a frase. No Twitter, o filho de Jair Bolsonaro, o recém-eleito homem forte do Brasil, gabou-se de conhecer Steve Bannon e unir forças para derrotar o “marxismo cultural”. (…)
O “marxismo cultural” também é um dos temas favoritos do Gab, a rede de mídia social em que Robert Bowers, o homem acusado de matar 11 pessoas em uma sinagoga em Pittsburgh no mês passado, passou algum tempo. (…)
Em seu manifesto de 1 500 páginas, o norueguês de direita Anders Breivik, que matou 77 pessoas em 2011, invocou o “marxismo cultural”. Repetidamente. “Ele quer mudar o comportamento, o pensamento e até as palavras que usamos”, escreveu. “Até certo ponto, já o fez.”
De acordo com seus oponentes ilusórios, “marxistas culturais” são uma aliança profana de aborteiros, feministas, globalistas, homossexuais, intelectuais e socialistas que traduziram a velha campanha esquerdista para levar os privilégios das pessoas da “luta de classes” à “política de identidade”. (…)
Alguns dos teóricos da conspiração que traçam as origens do “marxismo cultural” atribuem um significado desproporcional à Escola de Frankfurt. (…)
Muitos membros da Escola de Frankfurt fugiram do nazismo e foram para os Estados Unidos, onde supostamente carregavam o vírus do marxismo cultural para a América.
O discurso mais amplo em torno do marxismo cultural hoje se assemelha a uma versão do mito do “bolchevismo judeu” atualizada para uma nova era.
Nos anos após a Revolução Russa, os fantasistas aproveitaram o fato de que muitos dos seus instigadores eram judeus para sugerir que as pessoas poderiam economizar tempo equiparando o judaísmo ao comunismo – e matar ambos com um único golpe. (…)
A defesa do Ocidente em nome da “ordem” e contra o “caos” é um assunto antigo que se apresenta como um novo insight. Isso levou a danos graves no último século. (…)
Esse “marxismo cultural” é uma calúnia grosseira, referindo-se a algo que não existe, mas infelizmente não significa que pessoas reais não vão pagar o preço, como bodes expiatórios para apaziguar um sentimento crescente de raiva e ansiedade.
E, por essa razão, o “marxismo cultural” não é apenas um desvio triste de enquadrar queixas legítimas, mas também uma atração perigosa em um momento cada vez mais desequilibrado.