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2021-02-14

 

BANIR OU NÃO BANIR O CHEGA

Texto de Eugénio Lisboa.        (Imagem do Puxapalavra)

A minha ex-colega na embaixada de Portugal, em Londres, Ana Gomes, pessoa cuja inteligência, energia e coragem muito admiro – tendo um invejável percurso em defesa de grandes causas – fez recentemente uma participação à PGR no sentido de se ilegalizar o CHEGA. 

O assunto é complexo e o paradoxo democrático que implica não é de hoje. António Barreto, no Diário de Notícias, classifica expeditamente o acto da diplomata portuguesa, sem a ela explicitamente se referir, como estúpido e irracional. Acho curioso e um bocadinho bizarro um juízo tão expedito e sumário sobre uma perplexidade que tem preocupado os filósofos desde Platão para cá: a de saber-se se os tolerantes devem ou não tolerar os intolerantes. Há quem pense que sim, seja qual for o grau de intolerância, a bem da pureza da democracia. 


O notável filósofo Karl Popper chamou a isto o “paradoxo da democracia” porque, se por um lado, não aceitar tolerantemente a intolerância dos outros pode ferir a imagem da democracia, por outro, aceitá-la pode levar à morte dela. O problema não é de fácil solução, pelo que não deve ser despachado à pressa, com dois qualificativos injuriosos. 

No seu notabilíssimo livro – The Open Society and its Ennemies – Popper pronunciou-se, não só do alto da sua imensa cultura filosófica e científica, mas também ao sabor da sua experiência de cidadão germânico que assistiu ao assalto ao poder congeminado pelas hostes de Hitler, que a República de Weimar não quis ilegalizar (mesmo depois de Hitler ter deixado bem claro ao que vinha). A democracia alemã jogou o jogo da democracia impoluta e os nazis aproveitaram-se dessa fraqueza para se alcandorarem ao poder, alterando então as regras para se perpetuarem nele. Ficou-se à espera do “crime cometido” para só então se poder “democraticamente” agir. Simplesmente, uma vez cometido o crime, já era tarde para o punir e corrigir.

Quando se diz que, só quando o CHEGA cometer um claro atentado violento (“tiros e pistolas”) contra a democracia, se poderá ilegalizá-lo, está-se a escancarar a porta a uma tirania. A verdade, repito, é que o partido nazi já tinha deixado bem claro ao que vinha, e não me parece particularmente sensato que se tenha ficado à espera de ele destruir toda a Europa, para, finalmente, se intervir.

O CHEGA já deu claramente indícios de que não quer jogar o jogo da democracia e quem não quer jogar segundo as regras do jogo não deve sentar-se à mesa de quem joga. Pode ser que assim, como se diz, a democracia fique ligeiramente imperfeita, mas é preferível ficar com ela imperfeita a assistir ao seu suicídio, a bem da pureza. 

A perfeição não é deste mundo e eu prefiro viver com uma democracia um bocadinho imperfeita a cair de novo na ignomínia de um regime regido por um tiranete. Os demagogos intolerantes e famintos de poder fazem-me e sempre me fizeram mau sangue. Como dizia o meu admirado Jean Rostand, grande biólogo, excepcional escritor e admirável pensador aforístico, “há, na intolerância, um grau que confina com a injúria”.

Eugénio Lisboa 


2021-02-06

 

A CHINA luta contra a pobreza

 Mulher rural chinesa supera a pobreza e muda a sua vida


Bamu e sua família na nova aldeia de Taoyuan, que é servida por água, eletricidade, telecomunicações e estradas modernas. | Foto: Xinhua

Em 2010 ela se tornou conhecida graças a uma foto icônica, e 11 anos depois conta como sua vida mudou. 

O fotógrafo Zhou Ke passou 11 anos a procurar uma mulher que fotografou em 30 de janeiro de 2010, durante o período de viagens do Festival da Primavera na China.

Naquele dia ele tirou uma foto que, depois de publicada, tocou o coração de muitas pessoas: uma jovem mãe, chamada Bamu Yubumu, segura um bébé nos braços com a mão direita, enquanto com a esquerda carrega uma mochila e às costas leva um saco enorme.

Ke capturou o momento em que a jovem Yi* da Prefeitura Autónoma de Liangshan Yi (província de Sichuan do sudoeste) estava à espera do seu comboio na cidade de Nanchang para viajar para casa para a reunião de família no feriado.

Depois de muito procurá-la, Ke encontrou Bamu e entendeu que sua descoberta era uma espécie de alegoria às mudanças vividas pelos habitantes rurais da China graças às ações de seu governo no combate à pobreza.

A viagem de Bamu para sua casa pobre em 2010 levou três dias e duas noites. Agora, graças aos comboios de alta velocidade, a viagem entre Nanchang e Chengdu, a capital de Sichuan, leva oito horas, e daqui para a sua casa mais seis.

Com 32 anos de idade, Bamu passou a infância numa montanha alta e nunca pôde ir à escola. Depois de se casar, ela e o marido estabeleceram-se no sopé da montanha numa casa sem eletricidade.

Naquela época, eles tinham apenas 0,4 hectares de terra árida, onde plantavam milho, batata e trigo sarraceno. Graças ao seu primeiro emprego, ele ganhou um salário de 500 yuans (US $ 77) por mês.

Mas sua sorte começou a mudar quando um projeto de redução da pobreza começou a ser implementado em sua aldeia, Taoyuan. Em 2014, a família foi registrada como uma família pobre pelo governo local.

Quatro anos depois, eles receberam um auxílio-moradia de 40.000 yuans (US $ 6.200). Com mais 70.000 yuans (US $ 10.800) em economias, Bamu e sua filha construíram uma casa de concreto e cimento.

Desde 2013, Bamu deu à luz outras três crianças, todas em hospitais locais gratuitos, e recebeu apoio financeiro para cuidar da saúde e da educação de seus filhos.

Durante 2020, sua renda familiar chegou a 100.000 yuans (US $ 15.480) e eles conseguiram sair da pobreza. Seus filhos são educados em uma escola próxima.

Atualmente, os moradores de Taoyuan têm acesso a água canalizada, estradas modernas, eletricidade e telecomunicações.

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Artigo obtido aqui: Link


2021-02-01

 

Isabel do Carmo e o covid-19

Do Jornal Público de 29 de Janeiro de 2021

Notícias do túnel  

A médica Isabel do Carmo esteve internada dez dias com covid-19 no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Este é o seu testemunho, que é também um alerta e um gesto de reconhecimento.

Isabel do Carmo

Eu, médica, observadora diferenciada, estive internada com o diagnóstico de covid-19 durante dez dias nas enfermarias do Hospital de Santa Maria e penso que o meu testemunho pode servir de alerta e de um enorme reconhecimento. Alerta para o risco real e actual (rastrear e confinar é preciso). E dar graças à vida pela existência do nosso Serviço Nacional de Saúde.

Estive a trabalhar e a ver doentes até ao dia 23 de Dezembro, com todo o cuidado, e não foi por aí que o vírus entrou. No dia 24, juntámo-nos seis adultos e três crianças e, apesar das máscaras e das distâncias, alguma imprudência abriu por momentos a porta ao invisível. Contaminámo-nos todos e, fiados na falsa segurança do teste simples, alguns de nós multiplicaram o contágio. Os mais jovens mantiveram a sua energia transbordante, os de idade intermédia tiveram muitos sintomas, mas trataram-se em casa, os mais velhos reagiram de acordo com os factores de risco. E foi assim que, ao décimo dia de febre e outras queixas, o meu colega do centro de SME ordenou, e bem, que fosse à urgência de covid. Se não tivesse ido, tinha morrido, e esse é o primeiro alerta a manifestar.

Há um momento, determinado empiricamente, em que se conclui, por estatística, que é assim. Não vale a pena correr contra as probabilidades. Claro que foi muito incómodo, muito frio, muito desaconchegado, esperar por ser chamada no pequeno telheiro improvisado no piso das entradas. Fica melhor quem está dentro das ambulâncias, que têm suporte de oxigénio e macas ou cadeiras. Esta condição de espera, este ponto de entrada, seria possível melhorar fisicamente? Talvez. Mas os doentes chegam e não podem ser mandados para trás. Seria possível desviar um meteorito que caísse em cima das nossas cabeças? Só para os encartados e teóricos comentadores, que eles preveriam tudo.

Resolveu-se: agora temos o hospital de campanha. Todavia, foi por ali que me salvei. Quando finalmente dei entrada no “covidário”, ganhei direito a um cadeirão, a uma máscara de oxigénio e à segurança de ter entrado no circuito. Desde esse momento, fui sempre a senhora Isabel, idêntica a todos os outros, e nunca, e bem, a médica da casa. Algumas horas depois entrei numa “box”, com WC e uma porta com janelão de vidro. As dimensões comparei-as com outras de outras “boxes” de há muitos anos. Idênticas, mas o janelão e o calor humano pertencem a outro universo. Fiz então uma TAC num dispositivo colocado no “covidário”. E é aí o extraordinário. Nunca ao longo de tantos anos de clínica tive conhecimento de tal quadro – os meus pulmões estavam infiltrados de alto a baixo e dos dois lados com múltiplos focos de inflamação, que não deixavam o oxigénio atravessar os alvéolos e passar para o sangue, onde ele é necessário à vida. Sintomas? Poucos. Mas lá estava o oxímetro a mostrar níveis baixos.

Os meus colegas não estão desesperados, nem aflitos, estão profundamente preocupados, esgotados também. Quando lançam o alarme cá para fora não é um pedido de socorro para eles. É dizer que só o confinamento melhora o problema. E há uma linha vermelha que percorre este chão e é móvel – a das mortes evitáveis

Aqui reside um grande risco: esta “hipoxemia feliz” mata. Assim morreu o pai de uma colega minha com 50% de saturação e poucos sintomas. Foi a partir do nada ou da experiência inicial da China que os protocolos foram sendo estabelecidos. De madrugada, saí do “covidário” e fui rapidamente internada nas enfermarias de covid, Medicina 2C. Fizeram-me aquilo que está protocolado que se faça: oxigénio, corticóides, broncodilatadores, antibiótico se necessário. Para os meus companheiros de enfermaria, alguns hemodialisados, diabéticos, transplantados, cada protocolo era diferente. No mesmo piso, para além da porta de separação, havia mais enfermaria de covid, havia a zona dos intensivos e havia a zona dos intermédios com máscara permanente de oxigénio, onde ficou o Carlos Antunes e donde partiu para sempre no dia 19 de Janeiro.

Aquilo a que assisti de serenidade, de eficácia, de competência, ficará para sempre marcado como um momento muito alto da minha vida. Sei que as pessoas todas juntas não somam inteligências, multiplicam. É um fenómeno que faz parte da natureza humana, assim a humanidade sobreviveu. Observei a entrada regular e harmoniosa das assistentes operacionais, dos enfermeiros, dos fisioterapeutas, dos jovens médicos internos e das chefes seniores. Cada um sabe o gesto que tem que fazer, o equipamento em que tem que mexer, o registo necessário, a colheita de sangue a horas, a administração do medicamento. E… sabe também informar. Explica o que vai fazer e porquê.

O meu conhecimento dos espaços das urgências cresceu comigo organicamente. Fiz urgências nos bairros pobres de Lisboa, fiz no Hospital do Barreiro actos clínicos que não passavam pela cabeça de uma miúda de 20 e poucos anos, antes da classificação de Manchester andei de papel na mão a fazer triagem na sala de espera, vi crescer o Serviço de Observações das Urgências de Santa Maria com a Teresa Rodrigues a decidir os gestos urgentes. E lá continua ela a salvar gente. Sofri com os “directos” e culpabilizei-me. Vi o Carlos França instalar finalmente os cuidados intensivos. Vi tudo? Não. Não vi nada. Porque bastou o ano de 2020 e o inimigo ultra-invisível para perceber que há uma coisa que de facto é um “milagre”: a capacidade de auto-organização, rápida, eficaz, criativa, serena. Era possível fazer tudo isto com requisição civil? Tenho dúvidas. É a cultura que está para trás que explica o “milagre”.

Com as minhas amigas enfermeiras conversávamos por vezes sobre os “territórios”. Pois o milagre também desenhou territórios. Quer isto dizer que reina a paz nos serviços de urgência do Serviço Nacional de Saúde? Não. Esta onda organizada de espaços e de recursos humanos palpita como um corpo que pede respiração. O director da Medicina, Lacerda, vai buscar enfermarias a todo o lado possível, converte serviços e adapta-os. A Sandra Brás supervisiona como um arcanjo os vários espaços e equipamentos covid-19. Os meus colegas dos cuidados intensivos, com 85% de lotação, estão no limite, ou seja, na zona das necessárias e rápidas escolhas. Estes doentes não são pneumonias habituais. Têm mais demora de cama (quanta?), têm uso de equipamentos que não existiam antes.

Os meus colegas não estão desesperados nem aflitos, estão profundamente preocupados, esgotados também, a situação é dinâmica, é preciso fazer opções técnicas. Quando lançam o alarme cá para fora, não é um pedido de socorro para eles, é dizer que só o confinamento melhora o problema, é explicar que quanto mais infectados, mais sintomáticos. Entre estes aumentam os de risco e quanto mais risco mais cuidados intensivos. E há uma “linha vermelha” que percorre este chão e é móvel – a das mortes evitáveis.

Na minha enfermaria, por sinal toda de afrodescendentes, senti no mais fundo da noite que alguém abandonava a Montanha Mágica. Com serenidade. Sem obstinação. É também uma escolha. No dia seguinte, a animada Inalda, assistente operacional de São Tomé (já sou efectiva!), a enfermeira Ana, a enfermeira Marta, nos doentes o Sr. C., que ficou meu amigo e é de Cabo Verde, a Dona A., de Luanda, o Sr. D., que também é de Luanda e já venceu muitas coisas, corpos que já foram desejados, já se reproduziram, são a humanidade que ali está.

A médica de Medicina Interna dra. Patrícia Howell Monteiro, que ainda foi contratada em exclusividade (2008/2009?), é o pilar sólido e sustentável que orienta o Henrique Barbacena, o Renato e o Francisco, que hão-de fazer o exame da especialidade proximamente. Para onde irão? O Renato está a sofrer nos cuidados intensivos, a dar o máximo. O Henrique é também professor de Farmacologia, tive o privilégio que me explicasse coisas sobre vírus. E ausculta à velha maneira, como eu. Conseguimos ter um momento para conversar e a propósito da vida e do ultra-invisível, contou-me como lera apaixonadamente a Estranha Ordem das Coisas, do Damásio, livro que a chefe Patrícia lhe ofereceu. Há muitos anos, o António Damásio também foi da nossa incubadora, o Hospital de Santa Maria. E, a propósito, eu e o Henrique conversámos sobre a dinâmica da vida, a necessidade de não fazer classificações mecanicistas. E reganhei a grande esperança do aviso da tal frase do Abel Salazar: “Um médico que só sabe Medicina, então, não sabe Medicina.” Estes sabem Medicina e são uma das estruturas do SNS.

Médica, professora da Faculdade de Medicina de Lisboa, membro do grupo Estamos do Lado da Solução

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