2022-03-16
John J. Mearsheimer explica as origens da Guerra da UCRÂNIA
John J. Mearsheimer é um professor de ciência política e teórico das relações internacionais norte-americano ligado à Universidade de Chicago
2022-03-15
Guerra não evitada, escalada evitável
Guerra não evitada, escalada evitável
Tudo o que está agora a acontecer lembra as recentes palavras de John Matlock, o último embaixador dos EUA na URSS: estas lideranças parecem não estar à altura daquelas que resolveram a Crise dos Mísseis de Cuba.
A dimensão bélica do conflito russo-ucraniano persiste e a possibilidade de vir a extravasar o quadro regional aumenta cada dia que passa. Nesta marcha para o abismo, dir-se-ia que as lideranças políticas europeias parecem não estar a perceber o que está realmente em causa. Em vez de lançarem água para o incêndio e de investirem no estabelecimento de pontes de diálogo parecem incrementar a confrontação como se fossem atores imunes às consequências daquela guerra (veja-se a iniciativa de enviar MIG-29 para o teatro de operações ucraniano).
A análise tornou-se a segunda vítima da guerra
É necessário analisar os acontecimentos de um modo objetivo. Como ensina a Teoria dos Jogos, e toda a doutrina disponível, existe uma responsabilidade partilhada e uma interdependência estratégica entre os atores envolvidos numa contenda de interesses. A linguagem engajada e desproporcionada que tem prevalecido na comunicação social a nível internacional não ajuda a compreender o que está em causa nem o desenrolar dos acontecimentos.
Nessa deriva, aliás, ela própria torna-se um obstáculo: induz uma atmosfera pública intolerante, cria visão de túnel, inibe o debate genuíno, e incita a um massivo efeito de rebanho que, por sua vez, exerce tóxicas pressões na decisão política. Sabemos onde isso levou da última vez que houve um sobressalto securitário nos países ocidentais após o 11 de Setembro.
Os riscos de escalada estão em crescendo, assim como a retórica das várias lideranças. Em vez de contribuírem para diminuir a tensão, temos testemunhado exatamente o contrário, desatentos à alteração da natureza dos riscos: a guerra na Ucrânia tem sério potencial para provocar uma confrontação generalizada à escala global, ultrapassando o patamar convencional.
Antes de prosseguir convém clarificar que o objetivo declarado da Rússia é obter garantias de que a Ucrânia não fará parte da NATO, nem albergará unidades e equipamento militar de potências estrangeiras no seu território. As preocupações, os alertas e os protestos russos continuam a não ser ouvidos, aumentando simultaneamente o nível de ameaça percebido por este ator.
Alguns aspetos da insensatez que nos levou a esta situação merecem ser salientados. Desde 2014 que a situação se tem vindo a deteriorar. A Ucrânia tornou-se uma ponta de lança das políticas norte-americanas anti Rússia. A intervenção sistemática e continuada dos EUA nos assuntos internos da Ucrânia não passou despercebida à Rússia, em particular o fornecimento massivo, durante estes anos, de armamento a Kiev.
A Ucrânia tornou-se a partir de 2014 no ponto de dor (pain point) securitário para a Rússia. Ainda em 2014, a Rússia invade a Ucrânia e ocupa a Crimeia. E, tal como previsto num diálogo de Boris Ieltsin com Bill Clinton em 1995, a presente liderança russa considerou que tinha chegado a hora de ser ouvida com estrondo.
Putin parece ter considerado que poderia, através de uma manobra em que conjugaria a ação diplomática com uma demonstração de força, resolver o impasse de 20 anos causado pelo alargamento da NATO a Leste, a qual não parou com a sua política de porta aberta, e dos oito anos de ouvidos de mercador relativamente à implementação dos acordos de Minsk.
Durante estes anos, a situação militar agravou-se no Donbass, onde o dispositivo militar ucraniano era cada vez maior, em desrespeito frontal pelos acordos de Minsk, diariamente violados. O número de mortos civis durante os oito anos que nos separam do golpe de estado Euromaidan e as cedências de Zelenski às forças mais extremistas, ilustram a frustração cada vez maior de Moscovo.
Dominó de eventos
O ano de 2021 é crucial para se compreender a situação em que presentemente nos encontramos. Só nesse ano, os EUA forneceram cerca de 1,3 mil milhões de dólares de ajuda militar à Ucrânia. Em março de 2021, a Ucrânia publicou a sua estratégia militar, um documento orientado para a confrontação com a Rússia.
Durante os meses de junho, julho e setembro de 2021 tiveram lugar exercícios da NATO em território ucraniano, que envolveram cerca de 23 mil soldados. O espaço aéreo ucraniano foi aberto aos voos dos aviões de reconhecimento estratégico americano, assim como a drones que permitiam monitorizar o território da Rússia.
Nos últimos meses de 2021, com o pretexto de exercícios, a Rússia estacionou e exibiu um forte dispositivo militar no seu território e na Bielorrússia, nas proximidades da fronteira com a Ucrânia.
Já em plena crise, em novembro de 2021, os EUA e a Ucrânia reafirmaram a importância das suas relações de parceria estratégica e declararam a determinação em aprofundar essa parceria através da cooperação em vários domínios, nomeadamente no da defesa, com o objetivo de contrariar a agressão russa. A ocasião foi aproveitada para os EUA proclamarem o “direito da Ucrânia a decidir sobre o futuro da sua política externa livre de interferências externas, incluindo o respeito pelas aspirações da Ucrânia aderir à NATO.”
Em dezembro de 2021, relembre-se, o ministro russo dos Negócios Estrangeiros tornou público dois projetos de acordos com os EUA e com a NATO, onde pontificavam as garantias de segurança que a Rússia pretendia ver salvaguardas. Entre outras, a não adesão da Ucrânia à NATO. Os pedidos de garantia foram rejeitados, pelos EUA e pela NATO, não havendo lugar a qualquer convergência ou princípio de entendimento.
Com o aumento da tensão, entram na liça diplomática o Presidente Macron e o Chanceler Sholtz na primeira quinzena de fevereiro de 2022. O máximo que se conseguiu obter desta “shuttle diplomacy” entre Moscovo e Kiev foi uma declaração do Presidente Zelenski em que se comprometia a apresentar no parlamento um projeto de decreto-lei sobre o assunto, que não chegou a apresentar e que nunca iria ser aprovado.
Nos oito anos precedentes, a Ucrânia tinha demonstrado uma manifesta falta de interesse em honrar os acordos de Minsk, e em acomodar uma fórmula que respeitasse os interesses da sua minoria russófona, entretanto perseguida e proibida de falar a sua língua.
O rastilho chega ao paiol
Há que reapreciar os catalisadores específicos da crise. No dia 19 de fevereiro de 2022, na Conferência de Segurança de Munique, o Presidente Zelenski manifestou a intenção de renunciar ao protocolo de Budapeste abdicando da sua neutralidade (na verdade já o tinha feito quando inscreveu na sua Constituição a ambição de aderir à NATO), abrindo a possibilidade de a Ucrânia se rearmar nuclearmente. Esta intervenção é aplaudida de pé pela audiência. Moscovo já tinha denunciado por diversas vezes a pretensão da Ucrânia em possuir armamento nuclear. Tem a tecnologia desenvolvida pela URSS e os meios de lançamento. Desconhece-se se terá recebido ajuda externa para tal.
Em represália pelo discurso de Zelenski em Munique, agravado pela ausência de respostas sobre as pretensões ucranianas de aderir à NATO, e aparentemente assumindo um ponto de não retorno, Putin anuncia no dia 21 de fevereiro, que vai reconhecer a independência das repúblicas de Donetsk e Lugansk, argumentando que “tem todo o direito de tomar medidas de retaliação para assegurar a nossa segurança [da Rússia]. É exatamente isso que faremos.”
Ao contrário do que aconteceu após o confronto com a Geórgia, em que Moscovo reconheceu de imediato a independência das repúblicas da Abecásia e da Ossétia do Sul (agosto de 2008), no caso da Ucrânia a opção foi outra. Putin optou por abraçar uma solução autonómica para as repúblicas separatistas no quadro da Ucrânia.
E depois da última gota?
Com a situação ao rubro, a sinalização pública e aclamada do patamar nuclear por Zelenski e o abandono dos protocolos de Budapeste pode ser lida como um evento saliente. O que até aí era visto por alguns especialistas (nos quais me incluo) como estando para além dos limites do provável, isto é, uma invasão generalizada da Ucrânia, tornou-se um facto novo. Após este conspícuo momento (pouco enfatizado nos media “ocidentais”) percebeu-se claramente que a situação se tinha alterado, e que os esforços diplomáticos de última hora tinham falhado.
Se era possível vislumbrar algo na neblina, antes do início do conflito, era a certeza de que o Ocidente ajudaria a Ucrânia, mas que não iria assumir com sangue as ansiedades ucranianas. Os EUA instigaram a confrontação ucraniana com a Rússia, sabendo que não estariam disponíveis para combater a seu lado. O mesmo aconteceu com a UE, que andou estes anos todos a encorajar os ucranianos, sabendo que na hora da decisão não se iria apresentar ao lado de Kiev. Os atos heroicos no campo de batalha seriam deixados para os ucranianos.
Os apelos sistemáticos à intervenção militar do Ocidente na Ucrânia, cada vez mais pungentes, são a prova disso. Zelenski queixa-se diariamente da falta de apoio do Ocidente, da insuficiência do seu compromisso, continuando a insistir numa zona de exclusão aérea, ideia de que apesar de rechaçada pela NATO continua presente na agenda mediática. A Zelenski foi dado o papel de peão num transcendente xadrez geoestratégico de “Great Power Politics”, que lhe escapa, não passando de um mandatário de agendas que ultrapassam largamente os interesses securitários do Estado ucraniano, submetendo a sua população a um risco securitário extremo. Podia ter tomado os acontecimentos ocorridos na Geórgia no ano de 2008 como um dado adquirido e empreendido uma “Estratégia de Nash”, i.e., dada a estratégia dos outros, qual a sua melhor resposta?
O próprio Ocidente, que mostrou não estar disposto para se sacrificar operacionalmente pela Ucrânia por saber os custos que iria acarretar, parece insistir na aposta anterior. Com a tensão existente e os nervos à flor da pele, não se entende, numa lógica de atenuar tensões, a necessidade de se retomar, neste momento, o debate sobre a adesão da Finlândia e da Suécia à NATO. A altura para o fazer não podia ser mais inoportuna. A fórmula adotada pela Finlândia e Suécia (membros da UE mas com neutralidade estratégica), a qual inclui a participação ativa destes dois países na Parceria para a Paz da NATO, tem funcionado ao longo de décadas.
A disponibilização de MIG-29 romenos e polacos anunciada pelo Secretário de Estado norte-americano Antony Blinken, de custo-benefício duvidoso, só serve para aumentar a tensão com Moscovo, que já anunciou considerar isso um ato de guerra. Recentemente um senador norte-americano, o republicano Lindley Graham, que é conhecido pelas suas posições intervencionistas agressivas, veio sugerir o assassínio de Putin. Todos estes desenvolvimentos empurram a Rússia para um jogo de soma negativa. Neste cenário, Moscovo pode até jogar para perder, desde que o oponente do outro lado do tabuleiro perca também.
Kiev não é Kabul
Parece insólito acreditar que a Ucrânia sozinha poderá vencer militarmente a Rússia, independentemente do armamento que lhe for proporcionado. Essa ajuda tornará certamente mais oneroso o esforço de ocupação russa, mas devido à sua massa a Rússia muito provavelmente ganhará militarmente. Por mil e uma razões, a Rússia não se pode dar ao luxo de uma derrota no território da Ucrânia, como aconteceu com os americanos no Afeganistão. Não parece estar em causa a vitória russa sobre os ucranianos, mas o custo que essa vitória poderá comportar (com os concomitantes efeitos destrutivos no terreno).
Não sei o que será preciso mais acontecer para se perceber que a Rússia lutará até à exaustão das suas forças para impedir a entrada da Ucrânia e da Geórgia na NATO. Esse limite poderá não ter limite.
Tudo isto lembra as recentes palavras de John Matlock, o último embaixador dos EUA na URSS: estas lideranças parecem não estar à altura daquelas que resolveram a Crise dos Mísseis de Cuba. Em momentos diferentes George Keenan, Henry Kissinger, William Perry e John Mearsheimer, e no plano nacional, entre outros, Jaime Nogueira Pinto explicaram com um realismo mais eloquente do que o meu o que está verdadeiramente em causa. Mas é ainda tempo de relembrar aos decisores norte-americanos e ucranianos em que consiste o dilema de segurança e os seus efeitos.
Não restam hoje quaisquer dúvidas de que Washington sabia que se não fosse satisfeita a principal reivindicação russa – a não adesão da Ucrânia à NATO e o seu estatuto de neutralidade estratégica – algo de muito definitivo iria ocorrer. Optou por não fazer nada para o evitar.
Infelizmente, e de um modo sonâmbulo, sem se atentar ao risco que estamos a correr, continua a prevalecer a retórica da confrontação. O prolongamento da atual situação será insustentável. Esperamos ansiosamente que se arrepie caminho e prevaleça o desanuviamento da tensão.
O HUMANISMO OCIDENTAL É DECENTE?
É um esclarecedor artigo do jornalista PEDRO TADEU, no Diário de Notícias, em 2022/03/09 sobre a desinformação, sobre a campanha de mentiras relativamente à guerra na Ucrânia. Na realidade uma guerra entre as superpotências EUA e Rússia que tem como vítima no imediato a Ucrânia invadida pela Rússia e todos os povos da Europa, no plano económico e social, em seguida, considerando que não se chegue ao apocalipse da guerra nuclear.
Eis o texto de Pedro Tadeu:
"Por ser um bom cidadão do
mundo ocidental condeno a invasão russa da Ucrânia, participo em manifestações
contra Putin, choro os mortos de Kiev, comovo-me com o drama dos refugiados
ucranianos, sou solidário com as vítimas da brutalidade russa e recuso comprar
produtos russos. E faço-o com convicção.
Mas isto não chega, isto é
humanismo genérico, serve para qualquer um em qualquer parte do mundo - o
humanismo ocidental é especial, o humanismo ocidental é único, o humanismo
ocidental é original, o humanismo ocidental exige mais de mim...
O humanismo ocidental é
seletivo: ignorou os 12 mil haitianos enviados pelos Estados Unidos para a
prisão de Guantánamo e a invasão do país em 1994; ignorou a instigação e a
participação da NATO nas guerras da Jugoslávia e os seus 150 mil mortos;
ignorou as duas Guerras do Golfo, a mentira que desculpou uma delas e os 100
mil mortos diretos que os combates provocaram; ignorou mais 100 mil mortos que
o Iraque "protegido" pela coligação internacional lá instalada provocou;
ignorou a presença norte-americana durante 20 anos no Afeganistão e os 65 mil
mortes que ali ocorreram; ignorou os envolvimentos, desde 2001, diretos ou
indiretos, de forças ocidentais na Síria (estimam-se 400 mil mortes); ignora o
que se passa na Somália e no Iémen; ignora a ocupação da Palestina por Israel
e, nos últimos anos, os 21 500 mortos desse conflito.
O humanismo ocidental tem coração mole para um lado e
coração de pedra para o outro. As guerras espalhadas pelo mundo com
envolvimento do Ocidente somam, em 30 anos, quase um milhão de mortos, a grande
maioria civis, mas o bom cidadão ocidental não chora por eles.
O humanismo ocidental é dúbio. Condena vigorosamente a
prisão do opositor de Putin, Alexei Navalny, mas deixa apodrecer na cadeia o
denunciador das brutalidades das tropas americanas e da NATO, Julian Assange.
O humanismo ocidental é criterioso. Manifesta-se quando
críticos de Putin são envenenados no estrangeiro mas arquiva no esquecimento o
cientista inglês David Kelly que, misteriosamente, suicidou-se dois dias depois
de depor no parlamento sobre a falsificação de provas da existência de armas de
destruição maciça no Iraque. E o jornalista que deu essa notícia em primeira
mão foi despedido.
O humanismo ocidental é esclarecido. Classifica a imprensa
estatal russa de instrumento de propaganda "tóxica" mas glorifica o
World Service da BBC, pago pelo Ministério dos Estrangeiros britânico e onde
muitos jornalistas portugueses que lá trabalharam foram obrigados, durante
décadas, a pedir autorização superior para fazer qualquer tipo de entrevista...
e essa autorização só vinha depois de lida a lista de perguntinhas a fazer!
O humanismo ocidental é dinâmico. Indigna-se aos gritos
com a censura de Putin ao jornalismo independente, mas refila baixinho quando
proíbem a Russia Today de emitir no Ocidente ou quando os potentados das redes
sociais, que ninguém controla, filtram o que o povo pode ou não pode dizer.
O humanismo ocidental enerva-se com a brutalidade
policial contra manifestações políticas em países longínquos e contra as
prisões indiscriminadas de gente comum, mas cala-se, conformado, quando isso é
feito nos seus países contra os que recusam vacinar-se, contra os que exigem
direitos para os negros, contra os sindicalistas, contra os imigrantes pobres e
de pele escura. O humanismo ocidental já nem se lembra de George Floyd.
O humanismo ocidental é espertalhão. Explica todas as intervenções militares do Ocidente no resto do mundo com a necessidade de defender a democracia, o contexto histórico e sociológico das regiões, as tensões estruturais das economias locais, as rivalidades das religiões, as divisões tribais, as fronteiras mal definidas, a selvajaria dos ditadores locais. Mas para comentar a guerra ucraniana só aceita começar a análise por um facto: Putin invadiu no dia 24 de fevereiro o país de Zelensky. Falar do que está para trás, dos 13 mil mortos do Donbass, do crescimento da NATO para leste, por exemplo, é trair a Ucrânia, é trair o Ocidente, é trair a humanidade - e se o fazes, és mesmo má pessoa!
O humanismo ocidental é ingrato. Garante que a Rússia não é do Ocidente, exige que ignoremos 2 mil anos de cristandade partilhada, as leituras de Dostoiévski, Tolstoi, Tchekhov, Gorki; as músicas de Tchaikovsky, Stravinsky, Shostakovich, Prokofiev; os filmes de Eisenstein, Tarkovsky; os pensamentos de Bakunine, Lenine ou Trotsky. O humanismo ocidental acredita que nada deve do que é à Rússia.
Eu adoro os valores teóricos do humanismo ocidental, são um exemplo para o mundo, a sério, mas não aguento a constante prática violenta do humanismo ocidental, uma vergonha neste mundo, a sério."