2008-09-05
"Onda de crimes" e onda mediática
Fernanda Câncio (FC) oferece-nos hoje, no DN, "O PODER DE DEFORMAR" - uma reflexão interessante - como habitualmente, aliás - sobre o poder da comunicação social modelar o nosso sentimento de (in) segurança de acordo com a agenda mediática (que é sempre a agenda do lucro, a agenda do anúncio, a agenda da mercadoria, num mundo que há muito se vem tornando num mundo não de pessoas mas de consumidores).
Diz FC que "...estudos britânicos demonstram que os consumidores de tablóides têm um maior sentimento de insegurança" e que este tem mais a ver com a onda de notícias do que com a "onda" de crimes.
"O debate sobre a insegurança, e sobre o sentimento da insegurança, traz sempre à colação o papel dos media. Não há muito que saber: se durante uma semana todos os noticiários das TV abrirem com notícias de crime, cria-se na generalidade das pessoas a ideia de que se está a viver uma onda de criminalidade e/ou que a criminalidade está a aumentar. Isto, claro, independentemente de tal corresponder à verdade, o que mostra o quanto a percepção da criminalidade depende de factores que podem nada ter a ver com o nível de crimes nem com os crimes em si, e revela a existência de uma série de paradoxos.
O primeiro diz respeito ao facto de estudos internacionais demonstrarem que os países do mundo onde existe um mais elevado sentimento de insegurança são aqueles em que o risco de ser vítima de um crime é mais baixo."
"São contabilizados anualmente, em Portugal, mais de duas dezenas de milhar de crimes rotulados como "violentos" (de homicídios a agressões, passando por violações, violência doméstica e roubos, com ou sem ameaça de arma). São mais de 50 crimes violentos por dia. Por que motivo de repente há notícias diárias sobre alguns desses crimes? É porque estes se tornaram mais frequentes ou porque uma opção editorial entendeu relevá-los? Onde está a consubstanciação da existência de um aumento, e um aumento em relação a quê? Fazer estas perguntas não é negar a realidade; é, ao contrário, querer conhecê-la para melhor lidar com ela.
" E é esse o terceiro paradoxo: quem surja publicamente a dizer o que acabei de escrever, ou a apresentar dados que contextualizam a realidade criminal portuguesa actual não só na realidade criminal portuguesa dos últimos anos como na realidade criminal dos países que nos estão próximos é invariavelmente acusado de tentar "desvalorizar" ou mesmo "branquear" a tal onda de criminalidade.
"Sucede que, e esse é o quarto paradoxo, se a informação sobre criminalidade não estivesse fechada a sete chaves em Portugal (e é assim há muitos governos) e se qualquer cidadão pudesse ter facilmente acesso aos dados a ela referentes através dos sítios na Net dos ministérios e das polícias, como sucede em França, no Reino Unido e em Espanha (para citar apenas três países em que a procurei e encontrei), de preferência com a contextualização necessária (evolução temporal, números internacionais) a capacidade dos media de criar percepções distorcidas da realidade seria muito diminuída."
A polícia britânica - diz FC - chega a minúcias informativas "mostrando que numa zona metropolitana com o número de habitantes de Portugal a criminalidade reportada alcança níveis que por cá levariam decerto ao estado de sítio).
Bastava fazer o mínimo, ou seja, o que é suposto a administração pública de um Estado democrático e simplex fazer: simplificar o acesso à informação fidedigna e abortar, assim, as manipulações e distorções. Porque se informação é poder, quem a tem e não a liberta confere a outros o poder de deformar."
No tempo do "Estado Novo" a estatística dos crimes e mais ainda a dos suicídios era segredo de Estado (de "Estado Novo"!) porque o seu conhecimento tornava difícil compaginar tanto crima tanta vontade de desaparecer com a ideia de paraíso em que Salazar (um Santo) tinha transfornado Portugal. Agora o Estado que temos é um Estado Democrático e a falta de tal informação só pode ser justificada como a manutenção por inércia de uma prática sem sentido.