2011-02-06
Fernando Pessoa
LIVRO DO DESASSOSSEGO
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"Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa."
Edição: Richard Zenith
(Os números indicam os trechos)
3
Amo, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele sossego que o contraste assentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. A Rua do Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas tristes que alastram para leste desde que a da Alfândega cessa, toda a linha separada dos cais quedos - tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjunto....
12
Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.
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17
São horas talvez de eu fazer o único esforço de eu olhar para a minha vida. Vejo-me no meio de um deserto imenso. Digo do que ontem literariamente fui, procuro explicar a mim próprio como chegei aqui.50
...A beleza de um corpo nu só a sentem as raças vestidas. O pudor vale sobretudo para a sensualidade como o obstáculo para a energia.
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153
Ergo-me da cadeira com um esforço monstruoso, mas tenho a impresão de que levo a cadeira comigo, e que é mais pesada, porque é a cadeira do subjectivismo.187
A tragédia principal da minha vida é, como todas as tragédias, uma ironia do Destino. Repugno a vida real como uma condenação; repugno o sonho como uma libertação ignóbil. Mas vivo o mais sórdido e o mais quotidiano da vida real; e vivo o mais intenso e o mais constante do sonho. Sou como um escravo que se embebeda à sesta - duas misérias em um corpo só....
402
Poder reencarnar numa pedra, num grão de pó - chora-me na alma esse desejo.Cada vez acho menos sabor a tudo, mesmo a não achar sabor a nada.
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Porquê estes extractos de trechos do Livro do Desassossego? Para despertar o apetite daqueles que nunca o leram ou já o esqueceram.
Se tiver vagar e disposição ainda acrescentarei, amanhã ou depois, algumas observações que o Pessoa fez do L do D do seu "semi-heterónimo Bernardo Soares".
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