2012-03-27
A batota
Foi há já vários dias, mas acontecimentos destes, tendencialmente históricos, não são para esquecer rapidamente nem de resto mereceriam tão efémero destino. Estava o senhor Presidente da República de visita à «Sagres», portanto de pés firmemente plantados em lugar evocador de muitas grandezas passadas, quando foi mais uma vez abordado por jornalistas acerca do seu famoso prefácio que já então dera muito que falar. A televisão mostrou esse momento, como aliás era seu dever e seu direito, e por isso o País pôde ouvir o senhor Presidente.
A questão suscitada era a da acusação de deslealdade formulada pelo PR ao anterior PM por razões várias, entre as quais na circunstância se destacava o facto do então PM ter partido para as Europas de PEC IV em punho sem previamente dar cavaco ao senhor Presidente. Teria sido acto de deslealdade, infracção a deveres, insuportável provocação? O senhor Presidente não hesitou em esclarecer. Com a sua mais severa máscara presidencial, sublinhou que a resposta estava na própria Constituição da República, designadamente no seu artigo 201, alínea c), convidando todos a que fossem lê-la decerto para que em ninguém restasse a mais pequena dúvida. E como o senhor Presidente pode não se lembrar bem de quantos cantos tem «Os Lusíadas» ou de confundir Mann com More, mas para questões que ultrapassem as literatices é uma verdadeira vocação, logo passou a citar de cor a referida alínea c). Ali mesmo, diante de câmaras e microfones da TV, para que ficasse publicamente provada a razão das suas acusações e a deslealdade do arguido.
A clareza da água
Aconteceu, pois, que o senhor Presidente abriu a boca e citou, lembrando que a tal alínea c) do tal artigo 201 da Constituição obriga o primeiro-ministro a informar o Presidente da República de «todas as iniciativas relevantes» tomadas pelo governo da República. Assim mesmo, sem gaguejos, complementando o esclarecimento com o tal convite para que todos fossem ler a Constituição.
É de crer que quase ninguém o tenha feito, o senhor Presidente dissera e bem se sabe que o que o senhor Presidente diz são sempre verdades como punhos. Do outro lado, era claro que perante a prova concludente o ex-PM estava feito ao bife, com perdão do plebeísmo.
Aconteceu, porém, que houve quem, porventura suspeitoso, decidisse seguir o conselho do senhor Presidente e foi consultar a já então famosa alínea c) do artigo 201, assim querendo confirmar a clareza aquosa anunciada pelo senhor PR.
E o que leu então não foi bem o que esperava: o que leu foi que uma das «competências» do primeiro-ministro é a de «informar o Presidente da República acerca dos assuntos respeitantes à condução da política interna e externa do País».
Mesmo sem entrar nas diferenças entre «competências», palavra usada na referida alínea, e «deveres» ou «obrigações», palavras tacitamente implícitas no libelo acusatório formulado pelo senhor Presidente (e ocorre perguntar quantas importantes competências presidenciais este senhor Presidente se tem dispensado de exercer), é claríssimo como a água que o Presidente fez uma citação adulterada.
Porque, como bem se lê e bem se entende, a competência conferida ao primeiro-ministro na alínea c) do 201 tem um carácter genérico, não o de uma comunicação prévia acerca de cada passo da governação. Nada garante ao senhor Presidente que, no caso do famigerado PEC IV ter passado e ser bem acolhido, o primeiro-ministro não teria informado do facto o Presidente, provavelmente adicionando os pormenores que julgasse convenientes. Una coisa é certa: a Constituição não fala em «todas as iniciativas relevantes», isto é, não exige a minúcia, ao contrário do que parece ter estado na cabeça e na memória traiçoeira do senhor Presidente. Outra coisa, e mais grave, é igualmente certa: ao viciar a citação da Constituição que fez verbalmente, com essa viciação tornando irrefutável a deslealdade do então PM, o senhor Presidente fez batota. Terá sido a primeira vez, admita-se.
Mas a questão é que um Presidente da República não é eleito para andar a fazer citações convenientemente viciadas da Constituição da República. Não será talvez caso para que, descoberto o caso, se demita. Mas é de certo modo uma vergonha para o País inteiro.
Correia da Fonseca
Fonte: email recebido
A questão suscitada era a da acusação de deslealdade formulada pelo PR ao anterior PM por razões várias, entre as quais na circunstância se destacava o facto do então PM ter partido para as Europas de PEC IV em punho sem previamente dar cavaco ao senhor Presidente. Teria sido acto de deslealdade, infracção a deveres, insuportável provocação? O senhor Presidente não hesitou em esclarecer. Com a sua mais severa máscara presidencial, sublinhou que a resposta estava na própria Constituição da República, designadamente no seu artigo 201, alínea c), convidando todos a que fossem lê-la decerto para que em ninguém restasse a mais pequena dúvida. E como o senhor Presidente pode não se lembrar bem de quantos cantos tem «Os Lusíadas» ou de confundir Mann com More, mas para questões que ultrapassem as literatices é uma verdadeira vocação, logo passou a citar de cor a referida alínea c). Ali mesmo, diante de câmaras e microfones da TV, para que ficasse publicamente provada a razão das suas acusações e a deslealdade do arguido.
A clareza da água
Aconteceu, pois, que o senhor Presidente abriu a boca e citou, lembrando que a tal alínea c) do tal artigo 201 da Constituição obriga o primeiro-ministro a informar o Presidente da República de «todas as iniciativas relevantes» tomadas pelo governo da República. Assim mesmo, sem gaguejos, complementando o esclarecimento com o tal convite para que todos fossem ler a Constituição.
É de crer que quase ninguém o tenha feito, o senhor Presidente dissera e bem se sabe que o que o senhor Presidente diz são sempre verdades como punhos. Do outro lado, era claro que perante a prova concludente o ex-PM estava feito ao bife, com perdão do plebeísmo.
Aconteceu, porém, que houve quem, porventura suspeitoso, decidisse seguir o conselho do senhor Presidente e foi consultar a já então famosa alínea c) do artigo 201, assim querendo confirmar a clareza aquosa anunciada pelo senhor PR.
E o que leu então não foi bem o que esperava: o que leu foi que uma das «competências» do primeiro-ministro é a de «informar o Presidente da República acerca dos assuntos respeitantes à condução da política interna e externa do País».
Mesmo sem entrar nas diferenças entre «competências», palavra usada na referida alínea, e «deveres» ou «obrigações», palavras tacitamente implícitas no libelo acusatório formulado pelo senhor Presidente (e ocorre perguntar quantas importantes competências presidenciais este senhor Presidente se tem dispensado de exercer), é claríssimo como a água que o Presidente fez uma citação adulterada.
Porque, como bem se lê e bem se entende, a competência conferida ao primeiro-ministro na alínea c) do 201 tem um carácter genérico, não o de uma comunicação prévia acerca de cada passo da governação. Nada garante ao senhor Presidente que, no caso do famigerado PEC IV ter passado e ser bem acolhido, o primeiro-ministro não teria informado do facto o Presidente, provavelmente adicionando os pormenores que julgasse convenientes. Una coisa é certa: a Constituição não fala em «todas as iniciativas relevantes», isto é, não exige a minúcia, ao contrário do que parece ter estado na cabeça e na memória traiçoeira do senhor Presidente. Outra coisa, e mais grave, é igualmente certa: ao viciar a citação da Constituição que fez verbalmente, com essa viciação tornando irrefutável a deslealdade do então PM, o senhor Presidente fez batota. Terá sido a primeira vez, admita-se.
Mas a questão é que um Presidente da República não é eleito para andar a fazer citações convenientemente viciadas da Constituição da República. Não será talvez caso para que, descoberto o caso, se demita. Mas é de certo modo uma vergonha para o País inteiro.
Correia da Fonseca
Fonte: email recebido
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O problema deste país é que a comunicação social fez um pacto para derrubar Sócrates e agora não tem força para denunciar as palermices, vigarices e atropelos à liberdade que estes senhores estão a fazer.
A RTP está refém de de um processo de privatização anunciado e os privados ainda pensam que vão lucrar com a destruição dos direitos dos trabalhadores.
O problema é que quando estivermos a passar fome e à porrada uns com os outros, os ricos também não se vão safar.
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