2014-07-01
O soberano e os lacaios
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"A avaliar pelas
últimas eleições, os partidos do governo têm hoje a legitimidade social e
política que lhes é conferida por apenas cerca de dez por cento do universo
total dos eleitores recenseados. É muito pouco para quem já passou da voz
grossa à grosseria. Mas é o suficiente para quem, cada vez mais, demonstra ter
uma noção arcaica do Estado e do exercício do poder político.
Dir-se-ia que as declarações delirantes de uma auto-intitulada
“professora de direito” sobre a nomeação de juízes do tribunal constitucional,
ou de um ex-empresário sobre a necessidade de calibrar o escrutínio dos mesmos,
ou ainda a de um eminente economista sobre a sua deles mentalidade de
funcionários públicos radicam na conceção de l’état c’est moi, segundo
a qual o chefe do executivo personificaria ou deveria personificar todos os
poderes do Estado: o legislativo, o executivo e o judicial. Não responderia
apenas por um órgão de soberania, antes seria “o” órgão de soberania. Não se
encontraria vinculado a uma Constituição, antes a ditaria. Não seria um mero
chefe do executivo. Seria o Soberano.
Se, porém,
mudarmos de ponto de vista – para uma observação de segunda ordem –, então
percebemos que, neste Portugal do século XXI, por via de uma das mais
extraordinárias piruetas da história, o soberano não passa, afinal, de um
lacaio. Arroga-se uma autoridade absoluta, mas enverga a libré. “Decreta”,
“proclama”, “declara” e “calibra”. Mas sempre de libré. Preside. De libré.
Discursa. De libré. Participa nos órgãos da União Europeia. De libré.
Representa o país. De libré.
Dá-se ares de
soberano, mas a libré assenta-lhe na perfeição. Cai-lhe bem nos gestos, no
registo grave da voz, no aprumo lento do passo, que fazem da aparente
arrogância a mais refinada escola de subserviência. Cai-lhe bem na elegância
com que se verga, arremedando poder de decisão. Na diligência com que sabe
estender a passadeira, parecendo caminhar sobre ela. Na persuasão a falar e na
determinação a agir – em nome de quem verdadeiramente manda. É a libré de chefe
de governo: o último grito do pronto a vestir, na União Europeia.
O modelo até
parece ter sido talhado em Lisboa, pois não há chefe de governo em que ela
assente tão bem. Outros a usam, é certo, mas fica-lhes curta nas mangas. Talvez
porque ainda não compreenderam o pleno sentido da “revolução” neoconservadora
em curso: a restauração duma ordem feudal, o retorno ao Ancien Régime
– a um regime anterior às noções de “soberania popular”, “constituição”,
“separação de poderes”, “democracia” e “direitos humanos”.
Não se trata,
evidentemente, de restaurar monarquias, embora as existentes não estorvem. Nem
de alterar a estrutura formal da governação. Nem, portanto, de privar os povos
de eleições, parlamentos, governos e constituições. Trata-se, sim, apenas, de
subordinar tudo isso à vontade do soberano. Eis o que se pretende com as tão
badaladas “reformas estruturais” e “austeridade”.
E quem é ele –
esse soberano a quem chefes de Estado e de governo devem vergar-se como
lacaios? Esse novo senhor absoluto que se apodera do Estado e com ele se
confunde? Que legisla, governa, interpreta a seu bel-prazer a constituição e as
leis, acaba com a independência dos tribunais, põe e dispõe de todo e qualquer
direito, suspende o próprio “Estado de Direito”, e degrada os cidadãos à condição
de meros súbditos?
É, obviamente, o
capital financeiro. É ele que hoje encarna, mudando apenas de roupagem, o modo
de governação do antigo regime: l’état c’est moi.
Professor
catedrático jubilado (FCSH-UNL)"