2018-04-02
O caso Skripal e as dúvidas que ainda subsistem
Artigo do general Carlos Branco no Expresso online de 29-03-2018
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Na sequência das declarações de Theresa May, a primeira-ministra britânica,
no parlamento, a 12 de março, e de Boris Johnson, o seu ministro dos Negócios
Estrangeiros, sobre o alegado envenenamento do agente duplo Sergei Skripal e de
sua filha Yulia, as relações político-diplomáticas entre os países ocidentais -
nomeadamente Estados Unidos e Reino Unido - e a Rússia deterioram-se a um ponto
nunca visto desde o fim da guerra-fria, piores mesmo do que nos anos cinquenta
do século passado. Theresa May acusou a Rússia de ser “muito provavelmente”
responsável pelo duplo envenenamento. O assassinato “teria sido planeado
diretamente pelo Kremlin”, ou a “Rússia teria permitido que o gás tivesse caído
em mãos erradas”.
Desconheço quem possa estar por detrás deste incidente, mas estou
particularmente interessado em saber o que realmente aconteceu. A serem
verdadeiras as acusações feitas à Rússia justifica-se uma resposta firme.
Contudo, a argumentação utilizada pelas autoridades britânicas apresenta
algumas fragilidades não negligenciáveis. Mais de três semanas passadas sobre o
incidente, justificava-se a apresentação de provas inequívocas e irrefutáveis
sobre o envolvimento russo. Continua-se sem conhecer a identidade do
perpetrador, assim como as circunstâncias e o local da ocorrência. O que se tem
sabido é pela comunicação social e a informação é contraditória. Uns falam num
pub, outros num restaurante, parece que os Skripal teriam sido encontrados
moribundos num banco de jardim. Segundo alguns relatos o polícia que os
encontrou teria tido contacto com o veneno em casa dos Skripals, segundo outros
durante a prestação do auxílio. Seria conveniente conhecer a versão oficial.
Preocupa-me sobretudo a desastrosa gestão política do acontecimento. A
falta de evidência tem sido acompanhada por um retórica inaceitável, pouco
consentânea com aquilo que são as boas práticas da diplomacia internacional. O
assunto deveria ter sido logo encaminhado no dia 4 de março para a OPWC, o
fórum próprio onde o assunto deveria ser analisado. A Rússia argumenta com os
termos do Artigo IX da CWC, que estipula a necessidade de se efetuar um
primeiro esforço para clarificar e resolver, através de troca de informações e
consultas entre as partes, qualquer assunto que possa colocar em dúvida o
cumprimento das normas em vigor. Por seu lado, o governo britânico recusou-se a
partilhar as alegadas evidências, assim como as amostras do produto
alegadamente utilizado. A sua publicitação seria um xeque-mate. Contudo, não o
fez, prolongando inutilmente (ou não) uma discussão.
O Reino Unido optou por politizar o assunto e levá-lo ao Conselho de
Segurança da ONU, no dia 14. Nesse mesmo dia, já com todas as “certezas”, as
autoridades britânicas convidaram a OPWC a levar a cabo uma investigação
independente. Com a crise já instalada, a 19 de março – duas semanas após o
envenenamento - chegaram ao Reino Unido os especialistas da OPCW. Felizmente
que o tema não foi considerado ao abrigo do Artigo V pela NATO, apesar de ser
considerado um ataque a um país da Aliança. Um caso baseado em hipóteses e não
sustentado em evidências foi rapidamente equiparado a um ato de guerra. Teria
sido mais curial esperar pela finalização das investigações. Acusar primeiro e
investigar depois não parece ser a prática mais adequada.
Esta questão assume contornos burlescos quando o laboratório científico
inglês que fez análises ao sangue dos Stripal concluiu pela exposição a um
“nerve agent or related compound”… e as amostras indicaram a presença de um
“novichok class nerve agent or closely related agent), não se comprometendo com
uma prova irrefutável. Esperava-se que May tivesse promovido uma audição
parlamentar ao diretor do laboratório para que este fornecesse todas as
evidências e prestasse todos os esclarecimentos, nomeadamente sobre a origem
russa da substância, uma prática comum nas democracia avançadas.
Ao contrário do que afirmou Theresa May são muitos os possíveis
perpetradores, para além da Rússia, claro está. Naturalmente que a Rússia não
poderá ser excluída da lista dos suspeitos, assim como muitos outros, nomeadamente
os mais de 300 espiões que constavam na lista que Skripal entregou às
autoridades britânicas. Mas a lista de putativos suspeitos não acaba aqui. São
conhecidas as ligações profissionais de Skripal a Christopher Steele, e ao seu
possível envolvimento no Russiagate. Skripal tinha-se tornado um elemento
perigoso que podia causar danos na comunidade de inteligência americana, no
Partido Democrata e por aí adiante. Existem vários precedentes similares. As
autoridades policiais britânicas, tão zelosas noutras circunstâncias,
revelaram-se particularmente descuidadas na proteção dos Skripal.
Não podemos deixar de nos interrogar sobre o que é que objetivamente teria
a Rússia a ganhar - a alguns meses da realização do campeonato mundial de
futebol no qual investiu avultadas somas de dinheiro para fosse um sucesso - em
liquidar nesta altura um simples espião que deixara há muito de constituir um
perigo, agravando assim as já tensas relações com o ocidente? A resposta não é
evidente. Putin tem provado ser um ator racional. Tendo tido a oportunidade
para eliminar Skripal enquanto este permaneceu nos calabouços russos, não o
fez, porque o faria agora, depois de este viver oito anos em Inglaterra? É de
facto difícil descortinar uma razão (lógica).
A argumentação de May apresenta igualmente fragilidades quando
responsabiliza Putin por ter permitido a fuga do gás. Como se sabe, nos tempos
da União Soviética, o novichok era produzido no Uzbequistão, fábrica essa que
foi desmontada com a ajuda dos Estados Unidos em 1993. Sem salários, a venda de
Nnovichok foi uma forma que na altura muitos funcionários encontraram para
sobreviver. Dizer que se trata de um gás do “tipo desenvolvido pela Rússia”,
não prova que a substância utilizada tenha sido processada na Rússia. Ser
atropelado por um Mercedes não significa que a responsabilidade seja “muito
provavelmente” do governo alemão.
É desconcertante vir agora o Reino Unido acusar a Rússia de não ter
declarado todas as suas capacidades, não cumprindo as suas responsabilidades no
âmbito CWC. A ser verdade – o que desconheço – sendo esta informação conhecida
antes de 27 de setembro de 2017, a data em que a OPCW declarou a total
destruição do arsenal russo, porque é que o Reino Unido não informou a OPCW com
base no seu próprio intelligence, que tanto quanto sei tinha a obrigação de o
fazer? Seria muito importante ouvir o que os responsáveis britânicos têm a
dizer sobre isto.
Para além das questões de natureza técnica apontadas – que não se encontram
esgotadas – há várias outros aspetos a relevar. Em primeiro lugar, o rasto de
fiabilidade deixado pelos dois personagens responsáveis pela presente crise.
Um, ainda ontem fazia campanha contra o Brexit e hoje lidera o processo de
separação do Reino Unido da União Europeia, que por sinal lhe está a correr
bastante mal; o outro, liderou a campanha contra o Brexit mas depois não quis
assumir as devidas responsabilidades colocando a responsabilidade na condução
do processo no primeiro. Convém lembrar que o partido liderado por May não tem,
nem nunca teve pruridos em ser financiado pelos pouco recomendáveis oligarcas
russos que se refugiaram em Londres, transformando a city num enorme tanque de
lavagem de dinheiro russo. De acordo com o London Times e o Daily Telegraph, o
partido da Sr.ª May terá recebido deles donativos no valor de £820,000.
Em segundo lugar, convém trazer à memória as conclusões do relatório
Chilcot aprovadas pelo parlamento inglês, que chamava à atenção para as
narrativas deliberadamente exageradas apoiadas em intelligence fabricado à
“medida das necessidades” para convencer e receber o apoio das opiniões
públicas. Claramente que esta possibilidade não pode nem deve ser descartada
neste caso. Terão sido as mesmas fontes - igualmente credíveis - em que se
baseiam agora May e Johnson que terão convencido Blair da irrefutável posse de
armas de destruição massiva pelo Iraque. São conhecidas as consequências
desastrosas dessas crenças sem a devida certificação.
Recordamos ainda o papel desempenhado pelas chamadas empresas de “Strategic
Communications” como a Cambridge Analytica e a Strategic Communication
Laboratories próximas do partido Conservador e do aparelho militar britânico,
contratadas para influenciar a opinião pública levando-a apoiar o Brexit, algo
de que apenas se conhece a ponta do iceberg. É pois na palavra destas pessoas
que estamos a colocar o nosso futuro coletivo. Fará, provavelmente, algum
sentido parar para pensar e refrear os ânimos.
Encontramo-nos numa estrada perigosa. Assistimos a algo que se assemelha ao
início de uma guerra. As guerras, leia-se os confrontos militares
generalizados, são sempre precedidos por uma escalada que passa pela subida de
tom na retórica, a demonização do oponente, o reforço dos dispositivos
militares e a conquista da opinião pública para apoiar ações mais assertivas
contra o oponente. Depois é necessário criar um acontecimento, um pretexto que
não tem necessariamente de ser causado pelo oponente e que é normalmente
provocado por quem pensa que vai beneficiar com o resultado da guerra. Sabe-se
hoje quem montou a armadilha que levou à guerra do Vietnam, à guerra
espanhola-americana e muitas outras mais recentemente. Por isso, convinha que
prevalecesse o bom senso.
Começa a ser claro que o campeonato mundial de futebol será um palco desta
luta. Mas enquanto for só isso… a histeria russofóbica faz parte da operação de
moldagem das opiniões públicas, preparando-as para o confronto. Com o clima
criado poderá nem ser necessário conceber um pretexto. Bastará um imprevisto,
um erro de cálculo para nos levar para uma situação sem retorno, fazendo com
que a crise político-militar se transforme numa confrontação militar direta.
Essa possibilidade afigura-se-nos muito elevada. A nova postura nuclear dos
Estados Unidos e a crença de que se consegue manter uma guerra ao nível nuclear
tático, sem evoluir para o patamar estratégico e para a destruição total são
mais alguns ingredientes que nos devem fazer refletir. A presente crise – real
ou fictícia – enquadra-se perfeitamente no modelo. O que está mesmo a fazer
falta é testar os efeitos das novas armas hipersónicas.