2018-09-30
BOLSONARO E A AUTOVERDADE
O texto é de El País/Brasil e assim... vai em Brasilês :) Link
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A pós-verdade se tornou nos últimos anos um conceito
importante para compreender o mundo atual. Mas talvez seja necessário pensar
também no que podemos chamar de “autoverdade”. Algo que pode ser entendido como
a valorização de uma verdade pessoal e autoproclamada, uma verdade do
indivíduo, uma verdade determinada pelo “dizer tudo” da internet. E que é
expressa nas redes sociais pela palavra “lacrou”.
O valor dessa verdade
não está na sua ligação com os fatos. Nem seu apagamento está na produção de
mentiras ou notícias falsas (“fake
news”). Essa é uma relação que já não opera no mundo da
autoverdade. O valor da autoverdade está em outro lugar e obedece a uma lógica
distinta. O valor não está na verdade em si, como não estaria na mentira em si.
Não está no que é dito. Ou está muito menos no que é dito.
O valor da autoverdade
está muito menos no que é dito e muito mais no fato de dizer. “Dizer tudo” é o
único fato que importa. Ou, pelo menos, é o fato que mais importa. É esse
deslocamento de onde está o valor, do conteúdo do que é dito para o ato de
dizer, que também pode nos ajudar a compreender a ressonância de personagens
como Jair Bolsonaro e, claro, (sempre),
Donald Trump. E como não são eles e outros assemelhados o problema, mas sim o
fenômeno que vai muito além deles e do qual são apenas os exemplos mais mal
acabados.
Uma pesquisa de junho do Datafolha mostrou, mais uma vez, que a maioria das pessoas
que declaram voto em Jair Bolsonaro (PSL) são jovens: seu eleitorado se
concentra principalmente na faixa dos 16 aos 34 anos. O capitão do exército
também lidera as intenções de voto entre os mais ricos e os mais escolarizados
do país.
O candidato de extrema-direita está em primeiro lugar na disputa presidencial de outubro. Isso num cenário sem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Com Lula, Bolsonaro cai para o segundo lugar. Mas Lula, como sabemos, está preso e impedido de se manifestar num dos mais controversos episódios da história recente do Brasil, um país hoje assinalado pela politização da justiça.
O candidato de extrema-direita está em primeiro lugar na disputa presidencial de outubro. Isso num cenário sem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Com Lula, Bolsonaro cai para o segundo lugar. Mas Lula, como sabemos, está preso e impedido de se manifestar num dos mais controversos episódios da história recente do Brasil, um país hoje assinalado pela politização da justiça.
Em pesquisa recém
divulgada, a professora Esther Solano entrevistou pessoas na cidade de São
Paulo para compreender o crescimento das novas direitas e especialmente
da extrema-direita mais antidemocrática, representada
por Jair Bolsonaro. Os selecionados cobrem um amplo espectro de posição
econômica, de emprego, de idade e de gênero. Solano é professora da Escola
Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp) e do Mestrado Interuniversitário Internacional de Estudos
Contemporâneos de América Latina da Universidad Complutense de Madrid. Ela
tem se destacado como uma das principais estudiosas do perfil dos participantes
dos protestos no Brasil desde 2013, quando foi uma das poucas a escutar os adeptos da tática black bloc em profundidade.
A pesquisa, financiada
pela Fundação Friedrich Ebert, é ótima, importante e deve ser lida na íntegra.
Aqui, me limito a reproduzir um trecho que ajuda a iluminar a questão que
apresento nessa coluna:
“No começo da roda de
conversa com os alunos de São Miguel Paulista, assistimos a um vídeo com as
frases mais polêmicas de Bolsonaro. No final do vídeo, muitos alunos estavam
rindo e aplaudindo. Por quê? Porque ele é legal, porque ele
é um mito, porque ele é engraçado, porque ele fala o que pensa e não está
nem aí. Com mais de cinco milhões
de seguidores no Facebook, o fato é que Bolsonaro representa uma direita que
se comunica com os jovens, uma direita que
alguns jovens identificam como rebelde, como contraponto ao sistema, como uma
proposta diferente e que tem coragem de peitar os caras de
Brasília e dizer o que tem de ser dito. Ele é foda.
Na roda de conversa na escola de São Miguel Paulista, na Zona Leste, a mais precarizada de São Paulo, os alunos negam que Bolsonaro faça a difusão de um discurso de ódio. Mas valorizam a sua coragem de dizer coisas fortes. Um garoto de 16 anos resumiu: “Ele não tem discurso de ódio. Tá só expondo a opinião dele, falando a verdade”.
A
opinião de Bolsonaro, ou a “verdade” de Bolsonaro, que circula em vídeos de
“lacração” do “Bolsomito”, é chamar uma
deputada de “vagabunda” e dizer que não a estupraria porque ela não
merece por considerá-la “muito feia”; a afirmação de que sua filha, caçula de cinco
homens, é o resultado de uma “fraquejada” a declaração
de que seus filhos não namorariam uma negra ou virariam gays porque foram “muito bem educados”. E, claro, sua performance
na votação do impeachment de Dilma Rousseff (PT).
Ao declarar seu voto
pelo afastamento da presidente eleita, Bolsonaro homenageou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. O
herói de Bolsonaro, hoje estampado em camisetas de seus apoiadores, é um dos
mais notórios torturadores e assassinos da ditadura civil-militar, um sádico
que chegou a levar crianças pequenas para ver as mães torturadas, cobertas de
hematomas, urinadas, vomitadas e nuas, como forma de pressioná-las. Sobram
ainda declarações racistas de Bolsonaro contra índios e quilombolas.
“Ele (Bolsonaro) não está nem aí com o
politicamente correto, diz o que pensa e ponto, mas não é homofóbico. Ele
gosta dos gays. É o jeitão dele”, diz uma mulher
Uma das entrevistadas
por Esther Solano assim justifica as falas de seu escolhido: “É que ele tem
esse jeito tosco, bruto de falar, militar mesmo. Mas ele não quis dizer essas
coisas. Às vezes exagera, não pensa porque vai no impulso, porque é muito
honesto, muito sincero e não mede as palavras como outros políticos, sempre
pensando no politicamente correto, no que a imprensa vai falar. Ele não está
nem aí com o politicamente correto, diz o que pensa e ponto, mas não é homofóbico.
Ele gosta dos gays. É o jeitão dele”.
Na minha própria
escuta de pessoas nas periferias de São Paulo e na região do Xingu, no Pará, em
diferentes classes sociais e faixas etárias, escuto seguidamente uma variação
destas frases: “Ele é honesto porque ele diz o que pensa” ou “Ele não tem medo de
dizer a verdade”. Quando questiono o conteúdo do que Bolsonaro pensa, a
“verdade” de Bolsonaro, em geral aparece um sorriso divertido, meio carinhoso,
meio cúmplice: “Ele é meio exagerado, mas porque é um sincerão”.
Assim, Bolsonaro não
seria homofóbico ou misógino ou mesmo racista para aqueles que aderem a ele,
mas um “homem de bem” exercendo a “liberdade de expressão”. Estes são os adjetivos que
aparecem com frequência colados ao candidato de extrema-direita por seus
eleitores: “sincero”, “verdadeiro”, “autêntico”, “honesto” e “politicamente
incorreto” (este último também como um elogio).
Embora o conteúdo do que
Bolsonaro diz obviamente influencia no apoio do seu eleitorado, me parece que ele
é mais beneficiado pelo fenômeno que aqui estou chamando de autoverdade. O ato
de dizer “tudo” e o como diz o que diz parece ser mais importante do que o
conteúdo. A estética é descodificada como ética. Ou colocada no mesmo lugar. E
este não é um dado qualquer.
Por isso também é
possível se desconectar do conteúdo real de suas falas, como fazem tantos
de seus eleitores. E por isso é tão difícil que a sua
desconstrução, por meio do conteúdo, tenha efeito sobre os seus eleitores.
Quando a imprensa mostra que Bolsonaro se revelou um deputado medíocre, que
ganhou seu salário e benefícios fazendo quase nada no Congresso, quando mostra
que ele nada tem de novo, mas sim é um político tão tradicional como outros ou
até mais tradicional do que muitos, quando mostra que falta consistência no seu
discurso, assim como projeto que justifique seu pleito à presidência, há pouco
ou nenhum efeito sobre os seus eleitores. Porque o conteúdo pouco importa. As agências de checagem são um bom instrumento para
combater as notícias e as declarações falsas de candidatos, mas têm pouca
eficácia para combater a autoverdade.
A lógica em que a imprensa opera, que é a do conteúdo, não atinge Bolsonaro porque seu eleitorado opera em lógica diversa
Simples assim.
Complexo demais. A lógica em que a imprensa opera, quando faz jornalismo sério,
que é a do conteúdo, não atinge Bolsonaro porque seu eleitorado opera em lógica
diversa. Esse é um dado bastante trágico, na medida em que os instrumentos
disponíveis para expor verdades que mereçam esse nome, para iluminar fatos que
de fato existem, passam a girar em falso.
Se
Bolsonaro participar dos debates ao vivo durante a campanha eleitoral, para uma
parcela significativa do eleitorado brasileiro o que vai prevalecer é a
estética marcada pelo “dizer tudo” e dizer tudo lacrando. Também por isso Ciro
Gomes (PDT), por sua própria personalidade mais agressiva e sua
falta de freio na língua, é visto por uma parcela preocupada com a ascensão de
Bolsonaro como o mais capaz de enfrentá-lo.
Se esse quadro
permanecer, a disputa entre testosteronas infláveis – e inflamáveis – será mais
importante do que o conteúdo na eleição brasileira, porque mesmo quem tem
conteúdo terá que deixá-lo em segundo plano para ganhar a disputa da
dramaturgia. Mais um degrau escada abaixo na apoteótica descida do país rumo à
irrelevância.
Se este não é um
fenômeno exclusivamente brasileiro, no Brasil há uma particularidade que parece
impactar de forma decisiva a autoverdade. Essa particularidade é o crescimento
das igrejas evangélicas fundamentalistas e sua narrativa do mundo a partir de
uma leitura propositalmente tosca da Bíblia. A retórica do bem contra o mal
atravessa fenômenos como a “bolsonarização do país”.
A autoverdade atravessa o discurso religioso
fundamentalista como conceito e como estética
Embora os pastores
fundamentalistas exaltem a perseguição do “povo de Deus”, a prática mostra
exatamente o contrário, ao perseguirem os LGBTQs, as mulheres e, em alguns casos
de racismo, os negros. Mas a prática são os fatos, e os fatos não importam. O
que importa é a retórica e a forma. A autoverdade atravessa o discurso
fundamentalista como conceito e como estética. O milagre da transmutação aqui é
justamente fazer com que a estética seja convertida em ética.
Formados
nessa narrativa, uma geração de brasileiros é capaz de ler ou assistir a uma
reportagem da imprensa mostrando verdades que Bolsonaro gostaria que não
subissem à superfície não pelo seu conteúdo, mas pela ótica da perseguição. O
conteúdo não importa quando quem questiona o inquestionável é automaticamente
um inimigo, capaz de usar qualquer “mentira” para atacar um “homem de bem”.Afinal,
as imagens de malas de dinheiro (de dízimo, no caso) foram inauguradas por
alguns pastores neopentecostais, muito antes do que pela investigação da Lava Jato, e mesmo assim suas igrejas
não pararam de crescer. Bolsonaro torna-se o “perseguido” na luta do bem contra
o mal, o que faz todo o sentido para quem é bombardeado por uma visão
maniqueísta do mundo.
Produtos de
entretenimento como as novelas e os filmes supostamente bíblicos de uma rede de
TV como a Record, por exemplo, colaboram para formatar um determinado olhar
sobre a dinâmica da vida. Se alguém só vê o mundo de um mesmo modo, não
consegue mais ver de outro. Não há mais interpretação, a decodificação passa a
ser por reflexo.
Este é o mecanismo que
tem se alastrado no Brasil. E que é imensamente beneficiado pela tragédia
educacional brasileira. Não é por acaso que a escola pública, já tão
desvalorizada e desprestigiada, esteja sofrendo o brutal ataque representado
pelo movimento político e ideológico nomeado como “Escola Sem Partido”. O pensamento múltiplo e o debate
das ideias são os principais instrumentos para devolver importância aos fatos e
ao conteúdo, assim como recolocar a questão da verdade.
Não é um risco que os
protagonistas das novas direitas queiram correr. No jogo das aparências, seu
truque é sempre o mesmo: fazer um movimento ideológico afirmando que é para
combater a ideologia, agir politicamente mas afirmar-se antipolítico, apoiar
partidos de direita dizendo-se apartidários. Esse mascaramento só funciona se
aquele a quem a mensagem se destina abdicar do pensamento em favor da fé.
A adesão à política pela fé é a grande sacada dos
protagonistas da articulação religiosa-militarista que disputa o Brasil deste
momento
A retórica
supostamente bíblica está educando aqueles que não estão sendo educados. Como
produto de entretenimento, as novelas e filmes se articulam com os programas
policialescos sensacionalistas da TV, muitas vezes na mesma rede de TV, e os
ampliam. Já existe uma geração formada tanto na desumanização dos mais pobres e
dos negros, tratados como coisas que podem levar bala nas imagens desse tipo de
programa, quanto na adesão à política pela fé, a grande sacada dos atuais
protagonistas da articulação religiosa-militarista que figuras como Bolsonaro
representam.
A personificação, a
valorização do indivíduo, do “Um” que é só ele, jamais um+um, garante que
personagens como Bolsonaro e até mesmo Sergio Moro possam encarnar como “O Um”.
“O Um” contra o mal, ungido pelas “pessoas de bem”, dispostas a linchar quem
estiver no caminho. Afinal, se a luta é do bem contra o mal, tudo não só é
permitido como abençoado.
Não testemunhamos apenas a politização da justiça, mas algo possivelmente ainda mais perigoso: a “religiosização” da política
Não
há nada mais perigoso numa eleição do que o eleitor que acredita ser “um
instrumento de Deus”, absolvido previamente por todos os seus atos, mesmo que
eles sejam sórdidos ou até criminosos. Como a lei que vale não é a terrena,
laica, mas ditada diretamente do alto e, com frequência, diretamente ao
indivíduo, tudo é permitido quando supostamente “Deus estaria agindo”. Não
testemunhamos apenas a politização da justiça, mas algo possivelmente ainda
mais destruidor: a “religiosização” da política. E
ela tem como primeiro efeito a política da antipolítica.
Figuras como Bolsonaro
se beneficiam da crise econômica, do crescimento da violência e da produção de
medo, sim. Mas sua força vem de uma população treinada para aderir pela fé ao
que não diz respeito à fé. Por isso é possível até mesmo fazer política e se
dizer apolítico. Se o imperativo é crer, a adesão já está garantida não importa
o conteúdo do discurso, desde que a dramaturgia garanta entretenimento,
espetáculo. Embora pareçam desacreditar de quase tudo em suas manifestações na
internet, ninguém se iluda. Uma parte significativa do eleitorado brasileiro é
formada por crentes. E ser crente hoje no Brasil tem um sentido e um alcance muito mais
amplo do que em qualquer momento da história do país.
A
autoverdade desloca o poder para a verdade do um, destruindo a essência da
política como mediadora do desejo de muitos. Se o valor está no ato de dizer e
não no conteúdo do que é dito, não há como perceber que não há nenhuma verdade
no que é dito. Bolsonaro não está dizendo a verdade
quando estimula o ódio aos gays, mas sendo homofóbico. Não está dizendo a
verdade quando agride negros, mas sendo racista. Não está dizendo a verdade
quando diz que não vai estuprar uma mulher porque ela é feia, mas incitando a
violência contra as mulheres e sendo misógino. Há nome na língua para tudo isso
e também artigos no Código Penal.
Os jovens da periferia que aplaudem Bolsonaro precisam perceber que o
discurso da meritocracia é a sacanagem que os cimenta no lugar do qual
gostariam de sair
Muitos daqueles que o
aplaudem, especialmente os jovens nas periferias, não percebem que o discurso
da meritocracia proclamado pela extrema-direita que Bolsonaro representa é
justamente a sacanagem que os mantêm no lugar cimentado do qual gostariam de
sair. Não existe meritocracia, ascensão apenas por méritos próprios, sem partir
de bases minimamente igualitárias.
Jair Bolsonaro é a
encarnação de um fenômeno muito maior do que ele, do qual ele se aproveita.
Tanto quanto Donald Trump, em nível global. A tragédia é que eles possivelmente
sejam só os primeiros.
O desafio imposto tanto pela pós-verdade como pela autoverdade
é como devolver a verdade à verdade
O desafio imposto
tanto pela pós-verdade quanto pela autoverdade é como devolver a verdade à
verdade. Não faremos isso sem tomar partido por escola de qualidade para todos,
apoiando aqueles que lutam por isso de maneira muito mais contundente do que
fazemos hoje, assim como pressionando por políticas públicas e investimento, e
questionando fortemente os candidatos para além da retórica fácil. Nem faremos
isso sem a recuperação do sentido de comunidade, o que implica a reapropriação
do espaço público para a convivência entre os diferentes, assim como a retomada
da cidade. Temos que voltar a conviver com o corpo presente, compartilhando os
espaços mesmo e – principalmente – quando as opiniões divergem. Temos que
resgatar o hábito tão humano de conversar. E conversar em todas as
oportunidades possíveis.
E isso não amanhã.
Ontem. A verdade do momento é que estamos ferrados. Outra verdade é que, ainda
assim, precisamos nos mover. Juntos. Não por esperança, um luxo que já não
temos. Mas por imperativo ético.
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Eliane Brum é
escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho
da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do
romance Uma Duas.
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