2019-02-07
A Nova Guerra Fria e a Venezuela
Artigo de Boaventura Sousa
Santos, director do Centro de Estudos Sociais, no Público de 2019-02-06 (sem os mapas )
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Não é difícil concluir que não está em causa a defesa
da democracia venezuelana. O que está em causa é o petróleo da Venezuela.
O que se
está a passar na Venezuela é uma tragédia anunciada, e vai provavelmente causar
a morte de muita gente inocente. A Venezuela está à beira de uma intervenção
militar estrangeira e o banho de sangue que dela resultará pode assumir
proporções dramáticas. Quem o diz é o mais conhecido líder da oposição a
Nicolas Maduro, Henrique Capriles, ao afirmar que o Presidente-fantoche Juan Guaidó está a
fazer dos venezuelanos "carne para canhão".
Ele sabe
do que está a falar. Sabe, por exemplo, que Hugo Chávez levou muito a
sério o
destino da experiência socialista democrática de Salvador Allende no Chile. E
que, entre outras medidas, armou a população civil, criando as milícias, que
obviamente podem ser desarmadas, mas que muito provavelmente tal não ocorrerá
sem alguma resistência. Sabe também que, apesar do imenso sofrimento a que o
país está a ser submetido pela mistura tóxica de erros políticos internos e
pressão externa, nomeadamente por via de um embargo que a ONU considera
humanitariamente condenável, continua entranhado no povo venezuelano um
sentimento de orgulho nacionalista que rejeita com veemência qualquer
intervenção estrangeira.
Perante
a dimensão do risco de destruição de vidas inocentes, todos os democratas
venezuelanos opositores do governo bolivariano fazem algumas perguntas para as
quais só muito penosamente vão tendo alguma resposta.
Porque é
que os EUA, acolitados por alguns países europeus, embarcam numa posição
agressiva e maximalista que inutiliza à partida qualquer
solução negociada? Porque é que se fazem ultimatos típicos dos tempos imperiais
dos quais, aliás, Portugal tem uma experiência amarga? Porque foi recusada a
proposta de intermediação feita pelo México e o Uruguai, que tem como ponto de
partida a recusa da guerra civil? Porque um jovem desconhecido do povo
venezuelano até há algumas semanas, membro de um pequeno partido de
extrema-direita, Voluntad Popular, directamente envolvido na violência de rua
ocorrida em anos anteriores, se autoproclama Presidente da República depois de
receber um telefonema do vice-presidente dos EUA, e vários países se dispõem a
reconhecê-lo como Presidente legítimo do país?
As
respostas virão com o tempo, mas o que vai sendo conhecido é suficiente para
indicar por onde surgirão as respostas. Começa a saber-se que, apesar de pouco
conhecido no país, Juan Guaidó e o seu partido de extrema-direita, que tem
defendido abertamente uma intervenção militar contra o governo, são há muito os
favoritos de Washington para implementar na Venezuela a infame política
de regime change. A isto se liga a história das intervenções dos
EUA no continente, uma arma de destruição maciça da democracia sempre que esta
significou a defesa da soberania nacional e questionou o acesso livre das
empresas norte-americanas aos recursos naturais do país. Não é difícil concluir
que não está em causa a defesa da democracia venezuelana. O que está em causa é
o petróleo da Venezuela.
A
Venezuela é o país com as maiores reservas de petróleo do mundo (20% das
reservas mundiais; os EUA têm 2%). O acesso ao petróleo do Médio Oriente
determinou o pacto de sangue com o país mais ditatorial da região, a Arábia
Saudita, e a destruição do Iraque, da Síria, da Líbia, no Norte de África; a
próxima vítima pode bem ser o Irão. Acresce que o petróleo do Médio Oriente
está mais próximo da China do que dos EUA. Enquanto o petróleo da Venezuela
está à porta de casa.
O modo
de aceder aos recursos varia de país para país, mas o objectivo estratégico tem
sido sempre o mesmo. No Chile, envolveu uma ditadura sangrenta. Mais
recentemente, no Brasil, o acesso aos imensos recursos minerais, à Amazónia e
ao pré-sal envolveu a transformação de um outro favorito de Washington, Sergio Moro,
de ignorado juiz de primeira instância em notoriedade nacional e internacional,
mediante o acesso privilegiado a dados que lhe permitissem ser o justiceiro da
esquerda brasileira e abrir caminho para eleição de um confesso apologista da
ditadura e da tortura que se dispusesse a vender as riquezas do
país ao desbarato e formasse um governo de que o favorito pró-norte-americano
do futuro do Brasil fizesse parte.
Mas a
perplexidade de muitos democratas venezuelanos diz especialmente respeito à
Europa, até porque no passado a Europa esteve activa em negociações entre o
governo e as oposições. Sabiam que muitas dessas negociações fracassaram por
pressão dos EUA. Daí a pergunta: também tu, Europa? Estão conscientes de que,
se a Europa estivesse genuinamente preocupada com a democracia, há muito teria
cortado relações diplomáticas com a Arábia Saudita. E que, se a Europa
estivesse preocupada com a morte em massa de civis inocentes, há muito que
teria deixado de vender à Arábia Saudita as armas com que este país está a
levar a cabo o genocídio do
Iémen. Mas talvez esperassem que as responsabilidades históricas da
Europa perante as suas antigas colónias justificassem alguma contenção. Porquê
este alinhamento total com uma política que mede o seu êxito pelo nível de
destruição de países e vidas?
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A pouco
e pouco se tornará claro que a razão deste alinhamento reside na nova guerra
fria que entretanto estalou entre os EUA e a China, uma guerra fria que tem no
continente latino-americano um dos seus centros e que, tal como a anterior, não
pode ser travada directamente entre as potências rivais, neste caso, um império
declinante e um império ascendente. Tem que ser travada por via de aliados,
sejam eles num caso os governos de direita da América Latina e os governos
europeus, e, noutro caso, a Rússia. Nenhum império é bom para os países que não
têm poder para beneficiar por inteiro da rivalidade. Quando muito, procuram
obter vantagens do alinhamento que lhes está mais próximo. E o alinhamento tem
de ser total para ser eficaz. Isto é, é preciso sacrificar os anéis para não se
irem os dedos. Isto é tão verdade do Canadá como dos países europeus.
Tenho-me
reconhecido bem representado pelo Governo do meu país no poder desde 2016. No
entanto, a legitimidade
concedida a um Presidente-fantoche e a uma estratégia que muito
provavelmente terminará em banho de sangue faz-me sentir vergonha do meu
Governo. Só espero que a vasta comunidade de portugueses na Venezuela não venha
a sofrer com tamanha imprudência diplomática, para não usar um outro termo mais
veemente e verdadeiro da política internacional deste Governo neste caso.
Etiquetas: Boaventura Sousa Santos, Guaidó., Maduro, Venezuela