2019-02-27
António Lobo Antunes denuncia a Igreja
Quando morrer, não quero a vossa
hipocrisia em torno do meu caixão. Basta-me que a sombra de Cristo ou de um dos
seus Anjos se apiede, mesmo de longe, ainda que de muito longe, da minha alma
pecadora. Não quero nenhum fariseu junto ao nosso diálogo.
Não perdoo à Igreja nunca ter pedido
perdão aos portugueses pela sua colaboração activa com a Ditadura e as
iniquidades decorrentes dela, a sua total indulgência, desde a primeira hora,
com a injustiça, a crueldade, a desigualdade, a intolerância, os campos de
concentração - (Tarrafal, São Nicolau) - a monstruosa polícia política, a violência
da censura, o desprezo pelas mulheres, a guerra colonial, a perseguição aos
estudantes, aos operários, aos camponeses, a desavergonhada defesa dos
ricos, as missas para as criadas, as
homilias em que exortavam à obediência aos patrões, a violência para com os
sacerdotes e os bispos que ousaram levantar-se contra o Estado Novo, a forma
como abençoaram as centenas de milhares de rapazes mandados para África
combater as aspirações dos povos colonizados, mandando capelães abençoar aquele
horror, apoiar aquele horror, santificar aquele horror - (eu estava lá e vi) - em nome da luta contra o comunismo ateu,
em nome da defesa dos valores cristãos, em nome nome da tolerância, em nome de
Cristo. Porque carga de água não tem sequer a simples dignidade de pedir
desculpa? Porque carga de água finge esquecer-se? Porque carga de água este
silêncio? Eu sou cristão e aprendi a ser fiel até à morte como está escrito no
Livro e pergunto: como tem coragem de tocar na Bíblia, como tem coragem de ser
hipócrita para com o Senhor? O capelão do meu batalhão em África era um pobre
jesuíta que se queixava das instruções que o obrigavam a fazer a apologia do
colonialismo em nome do Deus e não tenho a menor dúvida que Jesus o cuspiu da
Sua boca. Porque não pede perdão por ter afastado tanta gente da Virtude com as
suas atitudes, as suas homilias, até com a utilização ignóbil das pobres
crianças de Fátima a quem Nossa Senhora pediu em português - (que outra língua saberiam elas?) - para rezarem pela conversão da Rússia
comunista, elas que nem sabiam o que comunismo queria dizer, manobradas sem
vergonha pela hierarquia eclesiástica. O que terá sofrido o nosso capelão - (Tenho de fazer isto, tenho de fazer isto, dizia ele) - obrigado a louvar a guerra santa, obrigado
a prometer o Paraíso aos nossos mortos
Basílica de S. Pedro - Roma
criaturas inocentes condenadas a dois
anos e tal de um sofrimento injusto. E a Igreja, passados mais de quarenta,
permanece em silêncio, completamente alheada da sua culpa. Isto entende-se?
Isto aceita-se? Isto apaga-se? Claro que os filhos das classes altas não iam
para a guerra. Conheço filhos dessas classes altas poupados a África com
desculpas inacreditáveis. Conheço os seus nomes e conheço as desculpas, desde
“incompatibilidade psicológica com o Exército” (posso citar nomes) até
“incontinência urinária” (posso citar nomes), até “pé chato” (posso citar
nomes), até classificações aldrabadas durante a especialidade (posso citar
nomes), e é impossível que a Igreja não soubesse disto. Soube, claro,
colaborou. E até hoje nenhuma voz oficial dela se ergueu, nenhuma voz oficial
dela protestou, nenhuma voz oficial dela pediu perdão a Portugal, nenhuma voz
oficial dela pediu perdão aos portugueses, nunca os sucessivos cardeais roçaram
sequer este assunto quanto mais falar nele. Pelo contrário: abençoaram o Estado
Novo que perseguiu os sacerdotes que ousaram, ainda que só timidamente,
levantar a voz contra isto tudo. Perseguiram-nos, expulsaram-nos fizeram-lhes a
vida negra. Nem disso a Igreja a que pertenço tem vergonha? Um bocadinho de
vergonha ao menos? Limitou-se a arranjar bispos castrenses que aceitaram,
apadrinharam, foram cúmplices desta situação.
Baílica de S. Pedro - Roma
Não temos uma Igreja de Cristo, temos, sob
muitos aspectos, uma Igreja hipócrita e complacente. Cristo não foi nunca
hipócrita nem complacente: Porque é que a Igreja portuguesa o é? Tenho o maior
orgulho no meu País, não tenho o menor orgulho nesta Igreja. Se Cristo aqui
estivesse vomitá-la-ia da sua boca por não ser fria nem quente. Meu Deus será
que nem arrependimento existe? Será que pensa que a memória dos homens é curta?
Será que pensa que os portugueses esquecem? Será que não se importa de ser
vendilhão do Templo? Será que acredita que vai ficar impune aos olhos do
Senhor? Será que imagina que o Senhor não sabe? Será que toma Deus por parvo?
Será que cuida que São Paulo, por exemplo, não a varreria? Onde estão as
palavras do Senhor? Os Seus ensinamentos?
O Seu exemplo? Ainda que em linguagem aparentemente críptica Cristo foi
sempre muito claro. E quem quiser ouvir que oiça. A ditadura acabou em 1974, há
quarenta e três anos portanto. E nem uma voz até hoje? Nem um simples pedido de
perdão, nem uma confissão fácil - Errei - não existe nenhuma humildade honesta neste
silêncio, não existe o simples assumir de uma culpa, de um erro formidável, de
um silêncio indecente. Dói-me na alma que a minha Igreja, o meu Deus sejam
amesquinhados e esquecidos pelos que se dizem Seus filhos. Tenho vergonha.
Tenho nojo. Tenho pena de vós que pagareis por isto. Será que um simples pedido
de desculpa não alivia a alma? Parece que não. Por isso, quando morrer, não
quero a vossa hipocrisia em torno do meu caixão. Basta-me que a sombra de
Cristo ou de um dos seus Anjos se apiede, mesmo de longe, ainda que de muito
longe, da minha alma pecadora. Não quero nenhum fariseu junto ao nosso diálogo.
Quereria um Homem Justo. Um Homem Justo bastava-me. Onde, na hierarquia da
Igreja, da minha pobre Igreja, ele estará?
(VISÃO, de 8 de junho de 2017)
Etiquetas: António Lobo Antunes., Cristo, Igreja