2019-09-02
O Museu Salazar em Santa Comba Dão para saudosas romarias
Excelente artigo de Helena Pereira de Melo
(professora de Direito da Saúde e da Bioética da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa). No Público de hoje
O dr Salazar
2 de
Setembro de 2019, 3:12
Que boa
ideia, a da Câmara de Santa Comba Dão, de construir um museu em homenagem a Oliveira Salazar. Um museu que o retrate
a trabalhar, sentado no seu fauteuil, com os óculos sobre o nariz e uma manta
nos joelhos… a despachar, quase ininterruptamente, os assuntos da
governação de um Império, cujas províncias ultramarinas jamais visitou, a
partir do Palácio de São Bento, onde havia um galinheiro no jardim. D. Maria, a
sua fiel governanta, ajudava a filtrar as visitas dos poucos que lhe tinham
acesso directo e a quem concedeu, ao longo dos anos, grandes benesses, aquém e
além-mar.
As
mulheres do Povo aclamavam-no nas suas aparições públicas: Professor de
Finanças Públicas, solteiro, “casado” com a Nação, católico devoto e honesto,
segundo a imagem dele construída e divulgada por António Ferro. O que pensava
sobre elas é conhecido: deviam conservar-se na sombra e desempenhar a nobre
função de reproduzir a valorosa raça lusitana enquanto cosiam as meias do
marido. Inquietavam-no, como diz num dos seus discursos, as suas ânsias de
emancipação, de estudar e trabalhar fora de casa… onde nos levariam?
Poriam
em causa a família cujos membros tinham um papel bem definido (sim, menina
também vestia rosa, no seu pensamento e menino azul, apesar de não ter escrito
sobre o tema, de tão óbvio que era à data) e cada família o seu lugar bem
determinado na sociedade portuguesa. Havia generais e magalas, senhoras e
sopeiras, “famílias-como-as-nossas” e “as outras” com as quais só misturávamos
sangue se, “apesar de recentes fossem ricas”, numa sociedade em que não eram
necessários os cem anos de hoje para se mudar de classe social: tal
simplesmente não era suposto acontecer.
Arquitetonicamente a Colónia Penal do Tarrafal aberta
por Decreto-lei também assinado, em 1936, pelo Senhor Presidente do Conselho,
António de Oliveira Salazar, não se afasta significativamente dos campos de
concentração nazis. Era um dos campos para onde o Regime enviava quem ousasse
pensar de forma diferente, os “presos políticos e sociais”. Havia covas no chão
onde eram interrogados os detidos quando as temperaturas atingiam mais de
quarenta graus centígrados. Péssimas, diriam hoje os defensores do regresso a
um regime semelhante, as condições de trabalho de quem os interrogava! Um dos
médicos do campo, Esmeraldo Prata, escreveu: “o meu trabalho não é tratar
pessoas, mas assinar certificados de óbito”. O Campo esteve em funcionamento
várias décadas… mais do que os campos de concentração da II Guerra Mundial?
Talvez a nostalgia do regresso à ordem representada
por Salazar, expressa no adágio “Deus, Pátria, Família”, seja a nostalgia da
boa ordem que nos acompanhou durante os longos tempos da Santa Inquisição primeiro
e, mais tarde, da PIDE … O desejo, não do regresso de Dom Sebastião e do que
este simbolizou (que utilidade teria um senhor de 24 anos que não saberia o que
é o Twitter e a quem teríamos de explicar, pacientemente, o funcionamento da
União Europeia?), mas sim de um regime ditatorial onde cada um teria o seu
lugar numa estratificação social previamente delineada por alguns e onde seria
possível enviar o vizinho ou colega de trabalho que detestássemos para um novo
Tarrafal, apenas porque a sua presença nos incomoda.
Ou, talvez, o desejo de celebrar um protocolo de
cooperação com São Tomé e Príncipe e de retomar a pena de degredo… rezam as
nossas Leis que havia lá grandes lagartos que comiam os meninos, filhos dos
Judeus expulsos, mal desembarcavam… Talvez, no museu dedicado à defesa dum
regime ditatorial, seja de substituir a palavra “lagartos” por “crocodilos”.
Convém que os visitantes saibam, com precisão, quem comerá os próximos grupos
de cidadãos indesejados e a ostracizar na sociedade portuguesa.
Etiquetas: Museu Salazar Santa Comba Dão., Salazar