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2020-03-07

 

Bendito Serviço Nacional de Saúde



Artigo de opinião de Paula Alves Silva na revista Visão de 2020-02-27  aqui
" Escrevo este texto cinco meses depois da minha primeira ida a uma urgência nos Estados Unidos. Três horas dentro das urgências que resultaram em cerca de oito mil dólares.

Julgo que os relógios dos hospitais são diferentes dos restantes. Tem, penso, um compasso próprio. Mais pausado. Mais audível. Torna-se num relógio ainda mais lento quando estamos sentados durante dez horas numa cadeira da sala de urgências. Deixamos de saber se foi a doença nos entorpeceu o corpo ou desconforto da cadeira, da qual o corpo não permite levantar. Escrevo este texto cinco meses depois da minha primeira ida a uma urgência nos Estados Unidos. Escrevo esta crónica a  titulo pessoal  lembrando as vezes sem conta em que pensei naquela noite no quão perfeito é o        
imperfeito Sistema Nacional de Saúde (SNS) Português.                                   

Atirem-se as primeiras pedras ao meu perfeito, que bem sabemos não ser perfeito. Talvez deva explicar. Sabem quanto custou a entrada nas urgências do hospital onde me sentei na capital americana? Mais de três mil dólares. A entrada, sublinho. Quando finalmente, após 10 horas de espera, cheguei à dita sala de urgências olhei em redor. Havia cerca de doze camas, um médico e três enfermeiras. Não foi difícil entender porque motivo os doentes entravam a conta-gotas na urgência.
Quantas vezes pensou dentro de uma urgência quanto custa cada um dos exames que realiza, se terá ou não dinheiro para os pagar? Nos Estados Unidos seguramente muitas. O que explica por que motivo o médico tenha de explicar cada um dos procedimentos e a sua razão, permitindo ao paciente a ultima palavra. A minha conta final foi bastante explícita deste sintoma: analises ao sangue – 1200$, farmácia (em concreto, soro e um anti-inflamatório) – próximo de 400$, uma ressonância magnética – quase 4000$ e, por fim, as três horas disponibilizadas pelo médico – cerca de 500$. Três horas dentro das urgências que resultaram em cerca de oito mil dólares. Perguntei-me muitas vezes: quanto custaria uma cirurgia?

É para isso que serve o seguro de saúde, pensarão muitos. Correcto. Mas o Sistema de saúde americano é mais complexo do que se prevê. Não é apenas o seu valor. Um plano básico de saúde para uma pessoa individual em início de carreira custa pelo menos 200 dólares por mês (valor que varia de acordo com o estado em que se encontre). Razão plausível pela qual cerca de de 28 milhões de pessoas nos Estados Unidos vive sem seguro de saúde, um número que tem vindo a aumentar nos últimos anos, sobretudo com a revogação do Affordable Care Act, mais conhecida como Obamacare.
Por outro lado, lembrar que ter um seguro de saúde não é sinónimo de garantia do pagamento total de uma conta. Importa, primeiramente, recordar que é necessário criar uma espécie de plafound. Ou seja, é necessário realizar alguns pagamentos para que a conta de seguro possua dinheiro para pagar a percentagem indicada para cada especialidade. Deste modo, alguém que hoje inicia o seu seguro terá uma cobertura menor ou quase nula comparativamente com alguém que já possui um seguro há alguns anos.

Além disso, é necessário referir que a franquia tem aumentado significativamente desde 2006. Nesse ano, apenas 50% das pessoas com seguro através da empresa de trabalho tinham uma franquia. Em 2018, o número disparou para 82%. Acrescenta-se a este factor o ainda aumento do valor da franquia. Se em 2006 o valor era cerca de 600 dólares, em 2018 situava-se nos 1700, visto que as seguradoras perceberam ser mais vantajoso fazer o paciente pagar uma taxa maior pelas idas ao médico ou ao hospital do que pagar um valor maior mensalmente.

Resultado? Milhares de processos feitos por hospitais contra pacientes que não conseguem pagar as suas dívidas. De notar que os programas de ajuda financeira dos hospitais apoiam apenas pessoas com salários anuais ate 400% acima do limiar de pobreza, isto é pessoas com salários anuais que rondem os 50 mil dólares [valores baixos para o custo de vida nos Estados Unidos].
A complexidade e o custo de um seguro tornou os Estados Unidos num país onde pessoas que caem na rua e precisam de assistências hospital recusam uma ambulância, porque o custo do transporte em ambulância em Washington DC, por exemplo, é 2500 dólares.

Por isso, perdoem-me, mas, sim, bendito SNS, pensei eu, recordando as idas ao hospital em Portugal, onde não esperei 10 horas (apesar de saber que acontece) e cujo atendimento em nada ficou a dever ao que recebi num dos hospitais da primeira potência mundial. Bendito Portugal pequenino que, apesar de não figurar nos tops das economias mundiais, percebe a importância de um estado social. Bendito SNS que apesar das suas grandes lacunas e das suas fragilidades não faz com que o paciente se questione se tem dinheiro antes de chamar uma tão necessária ambulância. Bendito.

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