2020-03-16
Escravatura em Portugal no xec XXI
Como é possível tudo isto? Em Portugal! No século XXI !
"São mãe e
filha, portuguesas. Foram escravas 11 anos. Aqui, ao nosso lado [região
de Bragança]. Depois de quase uma década à espera de justiça, viram os
criminosos condenados. A liberdade começa agora"
[A notícia é do Expresso de 14/03/2020 - pág. 18 e 19]
Mãe, porque é que fomos escravas?
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Maria, a mãe, e Joana, a filha, tentam recuperar o vínculo familiar que os
traficantes cortaram
TEXTO ANA SOFIA FONSECA FOTO RUI DUARTE SILVA
Joana não
despe o casaco de ganga. Está frio no Tribunal de Bragança e a ansiedade
congela-lhe as mãos. A leitura do acórdão está marcada para a tarde de 27 de
fevereiro. Falta meia hora. Será que é hoje? A dúvida consome. Anda há nove
anos à espera de justiça e não seria a primeira vez que a sentença acabava
adiada. Ainda há um par de meses moeu o passado três madrugadas inteiras.
Pediu
ao patrão o dia de folga e mentalizou-se para ouvir o veredicto. Agora, outra
vez a mesma saga. “E se não forem condenados?”, pergunta a si mesma. Sentada ao
seu lado, a mãe ajeita os óculos como quem afasta fantasmas. Têm medo de
encontrar os arguidos. Como é que se olha nos olhos de quem agiu como se fosse
“nosso dono”? Durante quase 12 anos foram propriedade de uma família. Vítimas
de tráfico de seres humanos e escravidão. Em pleno século XXI, o tráfico de
pessoas é um negócio comparável ao tráfico de droga e de armas, desconhece
fronteiras e movimenta mais de €130 mil milhões. Está quase na hora de pisarem
a sala de audiências, os nervos maiores do que mãe e filha. Como é que se
encara quem nos negou o direito de ser pessoa? “Eu cresci escrava”, suspira
Joana. Em cativeiro dos dois aos 14 anos: “Roubaram-me a infância.”
Meses
antes, dezembro de 2019. A árvore de Natal pronta e a mesma certeza: há
estações que não voltam. Joana tem 22 anos, o olhar tão forte quanto frágil:
“Se não me tivessem tirado a infância, podia ser uma adulta diferente.” Sonha
ser educadora, encher crianças de sorrisos. Enquanto esteve sob domínio dos traficantes,
estudou até à 4.ª classe. Tinha a lição bem estudada: nunca falar da mãe,
jamais contar o que vivia. Antes de sair para a escola, fazia as camas. À
noite, lavava as casas de banho. Quando a família teve mais uma criança, foi
retirada do ensino: “Passei a cuidar do bebé o dia inteiro.”
A memória
é má companhia, sempre as mãos congeladas de ansiedade. Pudesse ela esquecer e
já o teria feito, mas não há como apagar de onde se vem. Foi traficada em
Portugal, por uma família portuguesa. Sempre que desagradava aos traficantes,
era arrastada para um quarto ou despida no quintal: “Batiam-me a sério e no
inverno davam-me banho com uma mangueira de água gelada.” As lágrimas ardem no
rosto: “Não podia brincar, não podia fazer nada.” Mas o pior, o pior de tudo,
era ver a mãe ser “espancada”. Ouvir os gritos e não poder acudir.
Em cada quatro vítimas, uma é criança.
Em 2018, o Observatório de Tráfico de Ser Humanos deu conta de 29 vítimas
menores
Maria escuta a filha, os óculos embaciados
de dor. O sorriso nervoso que nunca a abandona. Sabe bem o que é apanhar com um
chicote marinho, ver o rosto esmurrado, a barriga negra de pancada. Mas nada
dói mais do que saber uma filha maltratada e ter de baixar os olhos. Partir um
prato e adivinhar a criança castigada no seu lugar: “Só para me magoarem.” Para
controlarem. Mas quando se é “menos que um animal”, o abismo nunca tem fundo. O
mais atroz começou na primeira noite: “Tiraram a minha filha de perto de mim e
disseram que ela nunca mais me podia chamar mãe. Puseram-na a dormir com outra
mulher, que estava ali como eu.” Atira o olhar para o chão: “Eu não pude ser
mãe e a minha filha estava ali.” Assim foi. Durante quase 12 anos, mãe e filha
a poucos metros de distância, sem quase trocar verbo. Lado a lado e impedidas
de ser mais do que estranhas. Joana remói a maldade que lhe calhou: “Não sei
porque é que nos fizeram isto, porque é que não queriam que eu tivesse afeto
pela minha mãe.” Desde as primeiras frases, a miúda ensinada a tratar os
traficantes por avós e tios. O tratamento familiar afastava suspeitas e a
desvinculação reduzia ainda mais as vítimas.
Tudo começou naquela tarde de 2000, em que
uma carrinha apareceu na aldeia de Maria a oferecer trabalho na agricultura,
boa remuneração, casa e comida. Sem eira nem beira, a mulher fez fé na promessa
de melhores dias: “Disse-lhes que tinha uma filha pequena, mas eles disseram
que fosse buscar a menina e trouxesse os documentos.” Foi por uma semana, ficou
praticamente 12 anos. A trabalhar de sol a sol, sem uma única folga, sem
receber um cêntimo. Num vaivém entre Portugal e Espanha, ao ritmo dos trabalhos
agrícolas — vindimas, poda, apanha de fruta e de azeitona. À noite e de
madrugada a lida da casa dos traficantes. “Comíamos as sobras deles ou
conservas.”
Tiraram-lhe os documentos, o telemóvel. Da
única vez que pediu para ir a casa, jurou a si mesma nunca mais abrir a boca:
“Deram-me uma tareia tão grande... E ameaçaram que se tentasse fugir nunca mais
via a minha filha.” Não se sabia escrava, tão-pouco vítima: “Eu só soube o que
isso era depois de a polícia nos tirar de lá.” O retrato de Maria é o da
maioria das vítimas, mais de 40 milhões, contabiliza a Organização
Internacional do Trabalho (OIT). Os traficantes preferem pessoas vulneráveis,
com famílias desestruturadas, baixa escolaridade, graves situações financeiras
e sociais, problemas de dependência ou cognitivos. Homens e mulheres fáceis de
enganar e coagir. Em cada quatro vítimas, uma é criança. Por cá, em 2018, o
Observatório de Tráfico de Seres Humanos (OTSH) deu conta de 29 vítimas menores
sinalizadas.
UM URSO AZUL, A PRIMEIRA PRENDA DE NATAL
Em casa,
Joana já tem as luzes da árvore de Natal acesas. O gosto das filhós e o prazer
de um presente são ganhos da liberdade. Guarda até hoje o peluche azul que
recebeu, no primeiro Natal, na casa-abrigo. Em rigor, até então nunca
desembrulhara sequer um carinho. Por essas e por outras, mãe e filha não saem
da ideia de Sebastião Sousa, inspetor-chefe da Polícia Judiciária do Norte,
responsável pela equipa que investiga crimes de tráfico de seres humanos:
“Temos tido muitos casos e estas vítimas estão sempre no fundo da cadeia
humana, mas este é diferente... Havia uma desumanização total.” Lembra-se como
se fosse hoje da manhã de novembro de 2011, em que entrou porta adentro da casa
dos agressores. As vítimas trancadas à chave, “desde as seis e meia a limparem
a casa, enquanto os traficantes descansavam”. Maria e outras duas vítimas
dormiam no chão de um anexo, a miúda aos pés dos traficantes. No primeiro
interrogatório, deu-se conta de que “a menina não sabia chamar mãe à mãe”, de
que a mãe “nunca tinha tido na mão uma nota de euro, moeda que entrara em
circulação há já nove anos”.
Sebastião
Sousa, inspetor da PJ, não tem dúvidas: “A violação é um método de controlo que
destitui a vítima de autodeterminação”
O passado é passaporte para o presente.
Casos de portugueses traficados para exploração laboral, quase sempre por
famílias que atuam como redes organizadas, continuam a chegar à Polícia
Judiciária, órgão de polícia criminal que, a par do Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras, investiga o crime de tráfico de pessoas.
O Global Slavery Index
estima 26 mil vítimas em Portugal. O inspetor traz o crime estudado: “É
altamente rentável, a mão de obra não só é gratuita como dá lucro. Por outro
lado, é mais difícil de provar. No tráfico de droga, se encontrar um quilo, a
prova está feita; no de seres humanos, a pessoa está na posse do traficante mas
tem medo de o denunciar e o criminoso costuma alegar que está apenas a ajudar,
que dá casa e comida.” O OTSH faz contas às vítimas sinalizadas. Em 2018, 45%
das vítimas foram homens, 24% mulheres e 14% menores. A maioria para exploração
laboral. Uma realidade que aparenta ser diferente do resto do mundo. A OIT
afiança que 71% das vítimas são mulheres (dados de 2017), a grande maioria para
fins sexuais. Mas os números estão longe de contar a história toda. Por cá, a
investigação parece mais voltada para a exploração laboral, onde numa só
operação tendem a ser sinalizadas mais vítimas do que na exploração sexual.
Mãe e filha pouco sabem destas cifras, mas
conhecem tudo sobre as vidas que espelham. Maria tem o cabelo curto, Joana até
ao peito. Caminham lado a lado na tarde chuvosa. Há enfeites de Natal no céu da
cidade, gente no corrupio das compras. São mãe e filha, mas até há pouco esse
era laço difícil de sentir. Marta Pereira, coordenadora do Centro de
Acolhimento e Proteção da Associação para o Planeamento da Família (APF), não
esquece o dia em que as recebeu na casa-abrigo. Vinham sujas, aterrorizadas,
“sem perceber o que estava a acontecer”. Durante mais de um ano, pesadelos de
madrugada e o desejo de serem realmente família a ocupar os dias: “Foi preciso
resgatar o vínculo entre mãe e filha. A Joana já tinha 14 anos e não conhecia
outra vida, foi difícil deixar de chamar avó e aprender a dizer mãe. Com o
tempo, tornaram-se muito cúmplices, mas foi um processo dilacerante.”
VÍTIMAS À VISTA DE TODOS
A história
continua a impressionar a responsável pela casa-abrigo: “Como é que foram
exploradas durante tanto tempo e à vista de todos? Não estavam numa jaula,
houve muita gente que viu e não quis ver.” Viviam num bairro social, Joana
frequentou a escola. “Nenhum professor achou estranho? Nenhuma assistente
social, nenhum vizinho... ninguém viu o sofrimento destas pessoas?” Joana
recebia abono de família e Maria tinha contas no banco em seu nome. Mas todo o
dinheiro tinha caminho certo — a bolsa dos traficantes. Maria deixa escapar um
suspiro. Demorou até que alguém olhasse para ela e para a filha, mas um dia um
médico e uma enfermeira incomodaram-se com o medo cravado no seu olhar.
“Não podia brincar, não podia fazer
nada.” Mas o pior, o pior de tudo, era
ver a mãe ser “espancada”. Ouvir os gritos e
não poder acudir
Esse dia é ferida aberta na memória de
Maria: “Levaram-me ao hospital para abortar.” Tinha o corpo amassado de pancada,
a boca tapada de medo. “Fui violada e engravidei.” Violada pelo marido de uma
das traficantes. No hospital de Bragança, a mulher e a sogra do violador não a
perdem de vista. Respondem por ela às perguntas da enfermeira, recusam deixá-la
a sós com o médico. Maria não tem coragem para pedir socorro — a filha estava
em casa com o restante clã. Desde que engravidara, o calvário tornara-se ainda
pior. Aos maus-tratos habituais somava-se a raiva das mulheres da casa que a
culpabilizavam pela violação. Acabaram por arrastá-la para Espanha, onde foi
obrigada a abortar. Estava grávida de 24 semanas. Enquanto recupera, a filha é
levada para o campo, a jorna inteira a trabalhar como gente grande. Sebastião
Sousa, o inspetor da Polícia Judiciária, não tem dúvidas: “A violação é um
método de controlo que destitui a vítima de autodeterminação, retirando-lhe até
o poder sobre o seu corpo.”
Anos antes, outubro de 2013. Estamos num
quarto, Maria caminha insegura. Mais silêncios do que palavras. Acabou de sair
da casa-abrigo, pela primeira vez tem uma casa e uma filha para cuidar. Está a
acostumar-se à liberdade, mas tantos anos de clausura vincaram ainda mais as
suas vulnerabilidades. Violação é crime que só conseguirá pronunciar anos mais
tarde. O pé nervoso na alcatifa: “Obrigaram-me a uma aventura.” Também na
audição para memória futura pouco contara. Quando não se conhece outra vida e
se tem medo de regressar para os agressores, o silêncio parece o menos
perigoso.
Final de fevereiro de 2019, Tribunal de
Bragança. A leitura da sentença está a começar.
Joana fecha-se no casaco de ganga. Os nervos e a raiva tomam-lhe os gestos.
Entram na sala de audiências. Os arguidos já lá estão, voltam-se na sua direção. Joana aperta a mão da mãe com força. Reconhece-lhes o olhar, há dores
que a memória não apaga. Hoje, olha-os de frente pela primeira vez: “Não podia
mostrar medo, para a minha mãe não ficar ainda pior.” Passos trémulos no
tribunal. Este é o momento por que esperou a vida inteira. Para estar aqui teve
de se despedir. O patrão recusou dar-lhe folga, tal como não permitia as férias
estipuladas no contrato. Este é o momento da libertação plena: “Nunca mais vou
abdicar dos meus direitos e não vou deixar que façam a minha mãe abdicar.”
Os principais arguidos foram condenados, com penas entre oito e oito anos e
meio de prisão. Mãe e filha renascem em lágrimas
Sentam-se nos bancos do tribunal. O
processo vem de longe, até para pedir justiça é preciso condições. Sem alguém
que as defendesse, deixaram os prazos passar. Não foram constituídas
assistentes nem pediram a tempo a indemnização prevista para as vítimas.
“Quando pegámos no caso, já não era possível. Além disso, as audiências
acontecem em Bragança, é bastante dispendioso estarmos sempre presentes”, conta
Manuela Nunes, advogada pro bono de Maria. E continua: “Espero que o Ministério
Público ou o juiz decrete uma indemnização.” O desejo não se concretizou. “Foi
um processo anormalmente moroso”, considera o inspetor da Polícia Judiciária.
Não foi possível contactar a defesa dos arguidos, até à hora de fecho desta
edição .
O frio parece ter desaparecido do
tribunal. Joana passa o processo a pente fino. O que mais gostava era de ter
tido voz no julgamento: “Só ouviram a declaração para memória futura que dei
quando fui libertada. Eu era uma miúda e não conhecia outra realidade. Não
tinha noção de tudo o que me tinham feito.” A leitura do acórdão é o virar da
página. Mãe e filha apertam as mãos com a força de duas décadas presas ao caso,
a vida à flor da pele. Cruzam os dedos para “puxar a sorte”. A condenação. “E a
sorte veio.” Os principais arguidos foram condenados, com penas entre oito e
oito anos e meio de prisão. Mãe e filha renascem em lágrimas. Abraçam-se. “Foi
bom, tão bom...”, diz Joana. Pela primeira vez, choram de alegria. Esta noite,
Joana esquece a pergunta que há muito a
atormenta: “Mãe, porque é que fomos escravas?” A resposta é o futuro.
Por
razões de segurança e ética, os nomes das vítimas foram alterados.
Etiquetas: Escrava em Portugal. Tráfico humano