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2008-01-07

 

Compassos (2)


Quando, há dias, Raimundo Narciso o evocou aqui no Puxa-Palavra - [Ver Aqui](*) - tentei recordar-me das primeiras impressões de leitura dos textos do Luís Pacheco: um militar sem cheta a deambular pelas ruas de Braga, ostentando uma rara ferocidade sexual; um sonâmbulo chupista a plagiar inadvertidamente uma novela que haveria de ser premiada por um júri desatento e convencional; a tal história de toda uma comunidade deitada, braço para aqui, perna para acolá. A par das leituras, ia ouvindo falar do autor. Uma névoa informal cobria-lhe o estro. Era apontado como um marginal, pouco empenhado na produção, meio louco, provocador, imprevisível. Relataram-me as suas visitas inesperadas, pedindo ajuda aos que melhor estavam na vida; as suas tiradas desabusadas; os seus momentos baixos; o envelhecimento e a decadência. Um dia "apanhado" à porta dos balneários públicos; noutro dia, perorando sentado numa esplanada.

Guardo dele a imagem de "Imprecador de Sul e Sueste": de pé, perto do Cais das Colunas, por detrás de várias pilhas de livros que trouxera até ali. A gabardina comprida, agitando-se, ao vento; os cabelos esvoaçando. As pessoas contornavam-no, evitando-o, mas ele estava completamente abstraído daquele formigueiro de transeuntes. De pé, agitado, tomava um livro, abria-o, lia uma passagem. Voltava a fechá-lo. Erguia-o sobre a cabeça e, enquanto proferia o que parecia ser uma sentença, um impropério ou uma imprecação, lançava-o com força às águas revoltas do Tejo.

E assim, livro a livro, até esgotar o acervo de ocasião.

Não se percebia bem o que dizia; não se divisavam suficientemente bem os títulos nas capas. Caía uma chuva miúda e o vento era forte. Não dava para perceber a riqueza daquela inquietação electrizada, daquela agitação e daquela fúria.
Sentado, já a bordo do "Fernando Pessoa", vi-o ficar para trás, na margem, cada vez mais pequeno, até desaparecer por completo, confundido na distância.
E foi com essa impressão que fiquei sempre: a imagem de um homem muito agitado, no cais, gritando e atirando livros à água. O mesmo homem que parava para escrever os textos densos e pesados que nos deixou.

Quando soube da morte dele, foi como se aquela cena se repetisse. Deveria ter compreendido logo que um escritor, editor e tanta coisa mais, a quem a vida não correu bem, tinha todo o direito de se indignar com a literatura. Ir para o Cais das Colunas desfazer-se dos livros com que se zangara, afigura-se-me agora uma reacção perfeita.

O gesto criativo corre sempre o risco de se confundir com a loucura.

(*) Ver, igualmente, texto de Isabel Lucas no DN de hoje [e aqui]

Comments:
Bonita peça literária para além de belíssima evocação.
Raimundo
 
Gostava de ser capaz de fazer o mesmo a alguns livros, discos, filmes, programas de televisão, notícias, até uma ou outra pessoa, que fui sendo "obrigado a ler" ao longo da vida. Um bom banho de rio!...
Possivelmente acalmaria o espírito e certamente, facilitaria "por de maior" as mudanças de casa...
 
Na morte de Luiz Pacheco
Nota da Comissão nacional do PCP para as Questões da Cultura

Editor e escritor, Luiz Pacheco assegurou um lugar na história da literatura portuguesa. Enquanto editor, deve-se-lhe a publicação de obras de vários autores importantes, de Mário Cesariny a outros surrealistas e a Herberto Helder. Enquanto escritor a sua obra, em grande parte ainda dispersa - foi autor, entre outros títulos, de "Comunidade", "O libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor", “O Teodolito", "Exercícios de estilo" e "Memorando, mirabolando" - dá testemunho de uma prosa depurada e segura, ágil e capaz de recriar a palavra oral e popular, e o calão.

Luiz Pacheco é um autor em que vida e obra se confundem e se ampliam mutuamente, em que a ficção, a crítica literária e a crítica da mundanidade literária se respondem e ecoam um fundo insistente e desassombradamente autobiográfico. Autor satírico, a sua obra combina a ironia e a subversão das convenções do moralismo conservador e hipócrita, com a capacidade de revelar o rosto agredido do ser humano, entre a opressão e o sofrimento da miséria e a alegria insurrecta.

Espírito livre e independente, personalidade lúcida e irreverente, Luiz Pacheco soube reconhecer no PCP o partido dos trabalhadores, o partido consequente, longa e tenazmente fiel aos seus princípios e objectivos, o seu Partido. Assim, em finais de década de oitenta, tornou-se por sua iniciativa militante do PCP - qualidade que manteve até morrer.

A Comissão Nacional do PCP para a Área da Cultura lamenta profundamente a morte de Luiz Pacheco e a perda que ela significa para a Cultura Portuguesa e manifesta aos seus familiares sentidas condolências.


http://www.pcp.pt/index.php?option=com_content&task=view&id=31069&Itemid=1
 
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