2018-04-09
Lula da Silva: os tribunais o condenam, a história o absolverá
Artigo de Boaventura Sousa Santos no Público 9-04-2018 :
O processo Lula da Silva põe a nu de forma gritante que algo está podre no
sistema judicial brasileiro, evidenciando procedimentos e práticas
incompatíveis com princípios e garantias fundamentais de um Estado de direito
democrático, os quais devem ser denunciados e democraticamente combatidos.
Totalitarismo e selectividade da acção judicial. O princípio
da independência dos tribunais constitui um dos princípios básicos do
constitucionalismo moderno como garantia do direito dos cidadãos a uma justiça
livre de pressões e de interferências, quer do poder político quer de poderes
fácticos, nacionais ou internacionais.
O reforço das condições de efectivação
daqueles princípios dá-se através de modelos de governação do judiciário com
ampla autonomia administrativa e financeira. Mas, numa sociedade democrática,
esse reforço não pode resvalar para um poder selectivo e totalitário, sem
fiscalização e sem qualquer sistema de contrapesos. O processo Lula da Silva
evidencia um judiciário em que tal resvalamento está em curso. Eis dois
exemplos. É clara a disjunção entre o activismo judiciário contra Lula da Silva
– célere, eficaz e implacável na acção (Sérgio Moro decretou a prisão de Lula
escassos minutos após ser notificado da decisão de indeferimento do habeas
corpus, do qual ainda era possível recorrer, e desde a denúncia à execução
da pena decorreram menos de dois anos) – e a lentidão da acção judicial contra
Michel Temer e outros políticos da direita brasileira.
A campanha anti-petismo faz lembrar a campanha anti-semitismo dos tempos do nazismo. Em ambos os casos, a prova para condenar consiste na evidente desnecessidade de provar.
E não pode colher o
argumento de que essa inacção foi bloqueada por manobras do poder político
porque não se conhece igual activismo do judiciário na denúncia dessas manobras
e em procurar ultrapassá-las. O segundo é a restrição totalitária de direitos e
liberdades constitucionalmente consagradas. Num Estado de direito democrático,
os tribunais têm de ser espaços de aprofundamento de direitos. Ora, o que se
assiste no Brasil é precisamente o contrário. A Constituição brasileira
determina que ninguém será considerado culpado até ao trânsito em julgado de
sentença condenatória, isto é, até que se esgotem todas as possibilidades de
recurso.
A Constituição Portuguesa tem uma norma semelhante, e não se imagina
que o Tribunal Constitucional português viesse determinar que uma pessoa fosse
presa com o seu processo em recurso no Supremo Tribunal de Justiça. Ora, foi
isso mesmo o que a maioria dos juízes do Supremo Tribunal Federal brasileiro
fez: restringiu direitos e liberdades constitucionais ao determinar que, mesmo
não tendo o processo transitado em julgado, Lula da Silva poderia começar a
cumprir pena. Qual a legitimidade social e política do poder judicial para
restringir direitos e liberdades fundamentais constitucionalmente consagrados?
Como pode um cidadão ou uma sociedade ficar à mercê de um poder que diz ter
razões legais que a lei desconhece? Que confiança pode merecer um sistema
judicial que cede a pressões militares que ameaçam com um golpe se a decisão
não for a que preferem, ou a pressões estrangeiras, como as que estão
documentadas de interferência do Departamento de Justiça e do FBI dos EUA no
sentido de agilizar a condenação e executar a prisão de Lula?
Falta de garantias do processo criminal. O debate mediático em torno da
prisão de Lula enfatiza o facto de o processo ter sido apreciado e julgado por
um tribunal de segunda instância que não só confirmou a sua condenação como
ainda agravou a pena. Este agravamento obrigaria a uma justificação adicional
de culpabilidade. Infelizmente, a hegemonia ideológica de direita que domina o
espaço mediático não permite um debate juridicamente sério a este respeito. Se
tal fosse possível, compreender-se-ia quão importante é questionar as provas
materiais, as provas directas dos factos em que assentou a acusação e a
condenação. Ora essas provas não existem no processo.
A acusação e a condenação
a 12 anos de prisão de Lula da Silva funda-se, sobretudo, em informações
obtidas através de acordos de delação premiada e em presunções. Acresce que as
condições de recolha e de validação da prova dificilmente são escrutináveis,
dado que quem preside à investigação e valida as provas é quem julga em
primeira instância, ao contrário do que, por exemplo, acontece em Portugal,
onde o juiz que intervém na fase de investigação não pode julgar o caso,
permitindo, assim, um verdadeiro escrutínio da prova. O domínio do processo, na
fase de investigação e de julgamento, por um juiz confere a este um poder
susceptível de manipulação e de instrumentalização política. Compreende-se a
magnitude do perigo para a sociedade e para o regime político no caso de este
poder não se autocontrolar.
Instrumentalização da luta contra a corrupção. O debate
sobre o Caso Lula protagonizado por um sector do judiciário polariza o combate
contra a corrupção, colocando de um lado os actores judiciais do processo Lava
Jato, a eles colando o combate intransigente contra a corrupção, e do outro
todos aqueles que questionam métodos de investigação, atropelos aos direitos e
garantias constitucionais, deficiências da prova, atitudes totalitárias do
judiciário, selectividade e politização da justiça. Essa polarização é
instrumental e visa ocultar justamente atropelos vários do judiciário, quer
quando age quer quando se recusa a agir.
O roteiro mediático da demonização do
PT é tão obsessivo quanto grotesco. Consiste na seguinte equação:
corrupção-igual-a-Lula-igual-a-PT. Quando se sabe que a corrupção é endémica,
atinge todo o Congresso e supostamente o actual Presidente da República.
O Estado de São Paulo de 7 de Abril é paradigmático a este
respeito. Conclui o roteiro com a seguinte diatribe: "a exemplo do que
aconteceu com Al Capone, o célebre gângster americano que foi preso não em
razão de suas inúmeras actividades criminosas, mas sim por sonegação de
impostos, o caso do triplex, que rendeu a ordem de prisão contra Lula, está
muito longe de resumir o papel do ex-presidente no petrolão". Esta narrativa
omite o mais decisivo: no caso de Al Capone, os tribunais provaram de facto a
sonegação dos impostos, enquanto, no caso de Lula da Silva, os tribunais não
provaram a aquisição do apartamento. Por incrível que pareça, da leitura das
sentenças tem de concluir-se que a suposta prova é mera presunção e convicção
dos magistrados. A campanha anti-petismo faz lembrar a campanha anti-semitismo
dos tempos do nazismo. Em ambos os casos, a prova para condenar consiste na
evidente desnecessidade de provar.
Os democratas e os muitos magistrados brasileiros que com probidade cívica
e profissional servem o sistema judicial sem se servirem dele têm uma tarefa
exigente pela frente. Como sair com dignidade deste pântano de atropelos com
fachada legal? Que reforma do sistema judicial se impõe? Como organizar os
magistrados dispostos a erguer trincheiras democráticas contra o alastramento
viscoso de um fascismo jurídico-político de tipo novo? Como reformar o ensino
do direito de modo a que perversidades jurídicas não se transformem, pela
recorrência, em normalidades jurídicas? Como devem as magistraturas
autodisciplinar-se internamente para que os coveiros da democracia deixem de
ter emprego no sistema judicial? A tarefa é exigente, mas contará com a
solidariedade activa de todos aqueles que em todo o mundo têm os olhos postos
no Brasil e se sentem envolvidos na mesma luta pela credibilidade do sistema
judicial enquanto factor de democratização das sociedades.
Etiquetas: Boaventura Sousa Santos, Brasil, Lula da Silva
2018-04-02
O caso Skripal e as dúvidas que ainda subsistem
Artigo do general Carlos Branco no Expresso online de 29-03-2018
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Na sequência das declarações de Theresa May, a primeira-ministra britânica,
no parlamento, a 12 de março, e de Boris Johnson, o seu ministro dos Negócios
Estrangeiros, sobre o alegado envenenamento do agente duplo Sergei Skripal e de
sua filha Yulia, as relações político-diplomáticas entre os países ocidentais -
nomeadamente Estados Unidos e Reino Unido - e a Rússia deterioram-se a um ponto
nunca visto desde o fim da guerra-fria, piores mesmo do que nos anos cinquenta
do século passado. Theresa May acusou a Rússia de ser “muito provavelmente”
responsável pelo duplo envenenamento. O assassinato “teria sido planeado
diretamente pelo Kremlin”, ou a “Rússia teria permitido que o gás tivesse caído
em mãos erradas”.
Desconheço quem possa estar por detrás deste incidente, mas estou
particularmente interessado em saber o que realmente aconteceu. A serem
verdadeiras as acusações feitas à Rússia justifica-se uma resposta firme.
Contudo, a argumentação utilizada pelas autoridades britânicas apresenta
algumas fragilidades não negligenciáveis. Mais de três semanas passadas sobre o
incidente, justificava-se a apresentação de provas inequívocas e irrefutáveis
sobre o envolvimento russo. Continua-se sem conhecer a identidade do
perpetrador, assim como as circunstâncias e o local da ocorrência. O que se tem
sabido é pela comunicação social e a informação é contraditória. Uns falam num
pub, outros num restaurante, parece que os Skripal teriam sido encontrados
moribundos num banco de jardim. Segundo alguns relatos o polícia que os
encontrou teria tido contacto com o veneno em casa dos Skripals, segundo outros
durante a prestação do auxílio. Seria conveniente conhecer a versão oficial.
Preocupa-me sobretudo a desastrosa gestão política do acontecimento. A
falta de evidência tem sido acompanhada por um retórica inaceitável, pouco
consentânea com aquilo que são as boas práticas da diplomacia internacional. O
assunto deveria ter sido logo encaminhado no dia 4 de março para a OPWC, o
fórum próprio onde o assunto deveria ser analisado. A Rússia argumenta com os
termos do Artigo IX da CWC, que estipula a necessidade de se efetuar um
primeiro esforço para clarificar e resolver, através de troca de informações e
consultas entre as partes, qualquer assunto que possa colocar em dúvida o
cumprimento das normas em vigor. Por seu lado, o governo britânico recusou-se a
partilhar as alegadas evidências, assim como as amostras do produto
alegadamente utilizado. A sua publicitação seria um xeque-mate. Contudo, não o
fez, prolongando inutilmente (ou não) uma discussão.
O Reino Unido optou por politizar o assunto e levá-lo ao Conselho de
Segurança da ONU, no dia 14. Nesse mesmo dia, já com todas as “certezas”, as
autoridades britânicas convidaram a OPWC a levar a cabo uma investigação
independente. Com a crise já instalada, a 19 de março – duas semanas após o
envenenamento - chegaram ao Reino Unido os especialistas da OPCW. Felizmente
que o tema não foi considerado ao abrigo do Artigo V pela NATO, apesar de ser
considerado um ataque a um país da Aliança. Um caso baseado em hipóteses e não
sustentado em evidências foi rapidamente equiparado a um ato de guerra. Teria
sido mais curial esperar pela finalização das investigações. Acusar primeiro e
investigar depois não parece ser a prática mais adequada.
Esta questão assume contornos burlescos quando o laboratório científico
inglês que fez análises ao sangue dos Stripal concluiu pela exposição a um
“nerve agent or related compound”… e as amostras indicaram a presença de um
“novichok class nerve agent or closely related agent), não se comprometendo com
uma prova irrefutável. Esperava-se que May tivesse promovido uma audição
parlamentar ao diretor do laboratório para que este fornecesse todas as
evidências e prestasse todos os esclarecimentos, nomeadamente sobre a origem
russa da substância, uma prática comum nas democracia avançadas.
Ao contrário do que afirmou Theresa May são muitos os possíveis
perpetradores, para além da Rússia, claro está. Naturalmente que a Rússia não
poderá ser excluída da lista dos suspeitos, assim como muitos outros, nomeadamente
os mais de 300 espiões que constavam na lista que Skripal entregou às
autoridades britânicas. Mas a lista de putativos suspeitos não acaba aqui. São
conhecidas as ligações profissionais de Skripal a Christopher Steele, e ao seu
possível envolvimento no Russiagate. Skripal tinha-se tornado um elemento
perigoso que podia causar danos na comunidade de inteligência americana, no
Partido Democrata e por aí adiante. Existem vários precedentes similares. As
autoridades policiais britânicas, tão zelosas noutras circunstâncias,
revelaram-se particularmente descuidadas na proteção dos Skripal.
Não podemos deixar de nos interrogar sobre o que é que objetivamente teria
a Rússia a ganhar - a alguns meses da realização do campeonato mundial de
futebol no qual investiu avultadas somas de dinheiro para fosse um sucesso - em
liquidar nesta altura um simples espião que deixara há muito de constituir um
perigo, agravando assim as já tensas relações com o ocidente? A resposta não é
evidente. Putin tem provado ser um ator racional. Tendo tido a oportunidade
para eliminar Skripal enquanto este permaneceu nos calabouços russos, não o
fez, porque o faria agora, depois de este viver oito anos em Inglaterra? É de
facto difícil descortinar uma razão (lógica).
A argumentação de May apresenta igualmente fragilidades quando
responsabiliza Putin por ter permitido a fuga do gás. Como se sabe, nos tempos
da União Soviética, o novichok era produzido no Uzbequistão, fábrica essa que
foi desmontada com a ajuda dos Estados Unidos em 1993. Sem salários, a venda de
Nnovichok foi uma forma que na altura muitos funcionários encontraram para
sobreviver. Dizer que se trata de um gás do “tipo desenvolvido pela Rússia”,
não prova que a substância utilizada tenha sido processada na Rússia. Ser
atropelado por um Mercedes não significa que a responsabilidade seja “muito
provavelmente” do governo alemão.
É desconcertante vir agora o Reino Unido acusar a Rússia de não ter
declarado todas as suas capacidades, não cumprindo as suas responsabilidades no
âmbito CWC. A ser verdade – o que desconheço – sendo esta informação conhecida
antes de 27 de setembro de 2017, a data em que a OPCW declarou a total
destruição do arsenal russo, porque é que o Reino Unido não informou a OPCW com
base no seu próprio intelligence, que tanto quanto sei tinha a obrigação de o
fazer? Seria muito importante ouvir o que os responsáveis britânicos têm a
dizer sobre isto.
Para além das questões de natureza técnica apontadas – que não se encontram
esgotadas – há várias outros aspetos a relevar. Em primeiro lugar, o rasto de
fiabilidade deixado pelos dois personagens responsáveis pela presente crise.
Um, ainda ontem fazia campanha contra o Brexit e hoje lidera o processo de
separação do Reino Unido da União Europeia, que por sinal lhe está a correr
bastante mal; o outro, liderou a campanha contra o Brexit mas depois não quis
assumir as devidas responsabilidades colocando a responsabilidade na condução
do processo no primeiro. Convém lembrar que o partido liderado por May não tem,
nem nunca teve pruridos em ser financiado pelos pouco recomendáveis oligarcas
russos que se refugiaram em Londres, transformando a city num enorme tanque de
lavagem de dinheiro russo. De acordo com o London Times e o Daily Telegraph, o
partido da Sr.ª May terá recebido deles donativos no valor de £820,000.
Em segundo lugar, convém trazer à memória as conclusões do relatório
Chilcot aprovadas pelo parlamento inglês, que chamava à atenção para as
narrativas deliberadamente exageradas apoiadas em intelligence fabricado à
“medida das necessidades” para convencer e receber o apoio das opiniões
públicas. Claramente que esta possibilidade não pode nem deve ser descartada
neste caso. Terão sido as mesmas fontes - igualmente credíveis - em que se
baseiam agora May e Johnson que terão convencido Blair da irrefutável posse de
armas de destruição massiva pelo Iraque. São conhecidas as consequências
desastrosas dessas crenças sem a devida certificação.
Recordamos ainda o papel desempenhado pelas chamadas empresas de “Strategic
Communications” como a Cambridge Analytica e a Strategic Communication
Laboratories próximas do partido Conservador e do aparelho militar britânico,
contratadas para influenciar a opinião pública levando-a apoiar o Brexit, algo
de que apenas se conhece a ponta do iceberg. É pois na palavra destas pessoas
que estamos a colocar o nosso futuro coletivo. Fará, provavelmente, algum
sentido parar para pensar e refrear os ânimos.
Encontramo-nos numa estrada perigosa. Assistimos a algo que se assemelha ao
início de uma guerra. As guerras, leia-se os confrontos militares
generalizados, são sempre precedidos por uma escalada que passa pela subida de
tom na retórica, a demonização do oponente, o reforço dos dispositivos
militares e a conquista da opinião pública para apoiar ações mais assertivas
contra o oponente. Depois é necessário criar um acontecimento, um pretexto que
não tem necessariamente de ser causado pelo oponente e que é normalmente
provocado por quem pensa que vai beneficiar com o resultado da guerra. Sabe-se
hoje quem montou a armadilha que levou à guerra do Vietnam, à guerra
espanhola-americana e muitas outras mais recentemente. Por isso, convinha que
prevalecesse o bom senso.
Começa a ser claro que o campeonato mundial de futebol será um palco desta
luta. Mas enquanto for só isso… a histeria russofóbica faz parte da operação de
moldagem das opiniões públicas, preparando-as para o confronto. Com o clima
criado poderá nem ser necessário conceber um pretexto. Bastará um imprevisto,
um erro de cálculo para nos levar para uma situação sem retorno, fazendo com
que a crise político-militar se transforme numa confrontação militar direta.
Essa possibilidade afigura-se-nos muito elevada. A nova postura nuclear dos
Estados Unidos e a crença de que se consegue manter uma guerra ao nível nuclear
tático, sem evoluir para o patamar estratégico e para a destruição total são
mais alguns ingredientes que nos devem fazer refletir. A presente crise – real
ou fictícia – enquadra-se perfeitamente no modelo. O que está mesmo a fazer
falta é testar os efeitos das novas armas hipersónicas.