2019-09-30
Sócrates explica Tancos no Expresso
Desta vez o nome é Tancos
«Neste artigo para o Expresso, José Sócrates ataca o Ministério Público
pelos casos que rebentam em cima de campanhas eleitorais e acha que há
motivações políticas para o conhecimento da acusação de Tancos. O ex-líder
socialista critica quem se justifica com "isso é lá da justiça", mas
também defende António Costa contra Rui Rio: "O ataque ao primeiro-ministro
pode ser político, mas é baseado no julgamento prévio do antigo ministro da
Defesa", escreve.
Para ir direto ao assunto, considero que a apresentação da acusação
judicial de Tancos tem uma evidente e ilegítima motivação política. Não só pelo
momento escolhido – No meio da campanha eleitoral –, mas, principalmente, pela
forma como o Ministério Público orientou a sua divulgação pública. O truque,
desta vez, consistiu basicamente em apresentar nas televisões a prova – uma
mensagem do antigo ministro para um deputado na qual afirma que “já sabia” .
Todos os jornalistas foram atrás : “já sabia” – eis a smoking gun. Todavia,
lida toda a mensagem, rapidamente nos apercebemos DE que o ministro diz que já
sabia da recuperação das armas e não que sabia da forma ilegal como elas foram
recuperadas. A mensagem nada prova. Não obstante, isolar aquelas duas
palavrinhas permitiu o formidável passe de mágica que contaminou toda a
conversa posterior. A operação chama-se “spinning” e constitui hoje uma
especialidade da nossa política penal.
2.
A partir daqui, nem direito de defesa, nem presunção de inocência, nem
tribunais. Eis ao que chegou esse poder oculto, subterrâneo e quase absoluto
que resulta dessa extraordinária aliança entre procuradores (alguns) e
jornalistas. A primeira vítima é o visado, é certo. Mas, se tentarmos ver um
pouco mais longe, as próximas vítimas serão os juízes. O seu papel na justiça
penal caminhará para a irrelevância. Afinal, já não precisamos deles: o
ministério público investiga, o ministério público acusa, o ministério público
julga – tudo isto nos jornais e nas televisões, seu terreno de eleição.
3.
O momento da divulgação não é inocente, não. Vejo para aí o álibi de que
haveria um prazo de prisão preventiva que se esgotava. Fraco argumento. Ainda
que mal pergunte, não é princípio geral que, em regra, o cidadão tenha o
direito de aguardar o seu julgamento em liberdade? Já nos esquecemos de que a
prisão preventiva é uma medida extraordinária? Já nos esquecemos que passar um
ano em prisão preventiva sem acusação é uma violência que a maior parte dos
países desenvolvidos não aceita? Já nos esquecemos que essa medida deveria ser
reservada apenas a matérias de especial complexidade? A infeliz resposta é que
todos estes princípios jurídicos parecem longínquos e ultrapassados. Os tempos
que vivemos são de normalização do abuso institucional. Acresce que, com tanto
tempo para investigar e acusar, é difícil encontrar razões para o não terem
feito antes da campanha. O que resta, pelas regras da experiência comum que
tanto gostam de invocar, é que queriam que a acusação tivesse exatamente o
efeito político que teve.
4.
Finalmente, os dois líderes políticos em campanha. Um deles produziu o
momento mais singular de toda a campanha afirmando com coragem que a democracia
não convive com julgamentos de tabacaria. Um novo acorde que teve o impacto de
tudo aquilo que se ouve pela primeira vez . O outro, com esmeradíssima
prudência, tratou o caso como assunto de intendência – isso é lá com a justiça.
Como se do outro lado de toda esta conversa não houvesse pessoas reais. Como se
não estivesse a falar de direitos individuais, de garantias, de Constituição.
Como se o direito democrático não fosse, no que é essencial, a imposição de
limites ao poder estatal .
5.
Uma semana depois a situação inverte-se : o primeiro decide atacar o
primeiro-ministro dizendo que, se não sabia é grave e, se sabia, mais grave é
ainda. Esta afirmação só se percebe se o próprio partir do principio de que o
ministro da defesa sabia, isto é, que ele é culpado. O ataque ao primeiro
ministro pode ser político, mas é baseado no julgamento prévio do antigo
ministro da Defesa. Em boa verdade, o que fez foi condenar sem ouvir a defesa e
sem esperar pelo veredicto de um juiz. Por sua vez, o primeiro ministro,
indignado, declara o óbvio – a declaração encerra uma vergonhosa condenação
pública antes de qualquer julgamento.
6.
Eis no que nos tornámos : em 2005, foi o Freeport; em 2009, as escutas de
Belém; em 2014, a operação marquês, agora foi Tancos que se seguiu à
espetacular operação de buscas e apreensões a propósito de um concurso de golas
para uso em incêndios e que juntou duzentos polícias, vários procuradores e o
juiz do costume. Tudo isto, evidentemente, devidamente coberto pelas
televisões, avisadas com antecedência. A violação do segredo de justiça é um
crime que o Estado reserva para si próprio. É isto, e julgo que não é preciso
fazer um desenho.
Ericeira, 28 de Setembro de 2019
José
Sócrates
Etiquetas: José Sócrates, Tancos