2019-01-15
RODRIGO TAVARES : Manual de Instruções para Entender o Governo Bolsonaro
Artigo de Rodrigo Tavares* original aqui: link
O Ministro do Meio Ambiente, que em entrevista exclusiva à TSF , deixou claro que a sua prioridade é garantir a eficiência da máquina pública, diminuir o assistencialismo do estado às ONGs ambientalistas e cimentar uma aliança entre a sustentabilidade e o desenvolvimento económico, também faz parte deste grupo.
Com meia dúzia de exceções, a qualidade técnica das pessoas é baixa. O Ministério da Educação, por exemplo, foi ocupado por educadores que se destacaram nas redes sociais e em blogues pelas suas teses radicais e autodidatas. O novo responsável pelo ENEM, a prova que dá acesso ao ensino superior, já defendeu publicamente que os professores no Brasil "pregam o aborto, incesto e pedofilia."
14 DE
JANEIRO DE 2019 - 13:19
O problema do novo governo brasileiro não é a ideologia de extrema-direita
mas a falta de uma ideologia.
A embalagem diz que o governo de Jair Bolsonaro é de
extrema-direita, antissistema, tecnocrata e formado pelos mais resilientes à
corrupção. Porém, as primeiras semanas de administração destapam um cenário
diferente, que vai ficando cada vez mais ostensivo à medida que o tempo passa.
Sem experiência executiva e, por isso, sem acesso a
uma equipe de trabalho lubrificada e preestabelecida, Bolsonaro não conseguiu
compor um governo conexo.
Na verdade existem pelo menos três governos dentro do governo Federal, com vasos comunicantes coagulados entre eles.
O primeiro é o dogmático. É a concessão de Bolsonaro
às suas inquietações néscias e às igrejas evangélicas dos subúrbios das grandes
cidades. É o regresso ao julgamento de Galileu pela Inquisição. Sem eloquência
nem
ciência, defende-se o fim do "globalismo" e do "marxismo
cultural" (Ministro das Relações Exteriores), creem ter tido visões de
Jesus Cristo em cima de uma goiabeira (Ministra da Mulher, Família e Direitos
Humanos) ou acreditam que "Deus está de volta ao Brasil" (Ministro da
Educação). É o grupo dos despreparados e dos que gerarão a matéria-prima para o
escárnio internacional.
Mas serão úteis também. Servirão para desviar as
atenções das medidas impopulares aplicadas por outros grupos, darão conforto
emocional aos brasileiros que verdadeiramente acreditam que o criacionismo deve
ser ensinado nas escolas e o socialismo abolido dos livros, e ajudarão a
cultivar bodes expiatórios. Se alguma coisa der errado, a culpa será dos
opositores do regime: os defensores dos direitos humanos, a esquerda que
"propaga que um feto humano é um amontoado de células descartável,"
ou os intelectuais e artistas "que vivem à custa de subsídios
públicos."
É um grupo que idolatra Bolsonaro.
O segundo é o jurídico-militar-policial. É quem gosta
de dar um murro na mesa e pôr ordem na casa. São os tratores que passam por
cima do cereal para cortar caminho. Se for necessário dar ordens ao presidente,
darão. Dos 22 ministros, sete são militares. É o grupo responsável pela
coordenação estratégica, infraestrutura, segurança e defesa nacional, ciência,
e minas e energia. Controlam os temas ligados à soberania nacional. Têm
destaque o Vice-Presidente Hamilton Mourão, o Ministro da Justiça Sérgio Moro,
o chefe da Secretaria de Governo (ministério que faz a ponte com o Congresso)
Carlos Alberto dos Santos Cruz e o chefe do Gabinete de Segurança Institucional
(responsável pelos serviços de inteligência), Augusto Heleno. Participam no
governo com régua e esquadro. Encaram-no como uma missão de paz no Congo ou no
Haiti.
É um grupo que mantém uma relação meramente
institucional com Bolsonaro.
O terceiro grupo é o económico. Aqui o interesse é
monetário. Liderado pelo Ministro da Economia Paulo Guedes, é composto por
pessoas de ideias liberais que fazem uma incursão rápida pelo governo para
vitaminar as suas carreiras e garantir o enxugamento da máquina do estado.
Conhecem-se todos há muito tempo, partilharam universidades no estrangeiro,
palestras em São Paulo e dividendos anuais em fundos de investimento. É por
causa deste grupo que a elite brasileira votou em Bolsonaro. Marcarão o governo
pelo pragmatismo. Tanto farão alianças com a China quanto com os EUA, cortarão
dinheiro para a segurança social, apoios culturais e programas sociais até que
o Excel fique no azul. Direitos trabalhistas, interesses indígenas e vontades
da população negra não fazem parte do algoritmo. Mudança da Embaixada para
Jerusalém? É um cataclismo irrelevante, desde que não afete as contas públicas.
O Ministro do Meio Ambiente, que em entrevista exclusiva à TSF , deixou claro que a sua prioridade é garantir a eficiência da máquina pública, diminuir o assistencialismo do estado às ONGs ambientalistas e cimentar uma aliança entre a sustentabilidade e o desenvolvimento económico, também faz parte deste grupo.
Quando a faca bater no osso, os integrantes deverão
começar a sair do governo e a reocupar cargos no mercado financeiro. É um grupo
que abomina os seus colegas dogmáticos, inquieta-se com o peso que o grupo
militar possa vir a ter e que não nutre um particular respeito por Bolsonaro.
Se conseguirem concluir o trabalho no primeiro mandato, vão torcer para que o
presidente não se recandidate. Preferirão apoiar um republicano em sentido americano
e alguém menos constrangedor. Um Sebastián Piñera brasileiro.
É por isso que o governo Bolsonaro, contrariamente ao
que indica o anúncio, está longe de ser um governo ideologicamente homogéneo e
mais longe ainda de ser um governo de extrema-direita. A maioria dos seus
membros é simplesmente uma massa utilitarista e pragmática - seguem o poder.
Também está longe de ser um governo antissistema. A maioria passou por governos
anteriores, pelo Congresso Nacional ou por Assembleias Estaduais e quase todos
são filiados a partidos políticos. O novo presidente do banco estatal de
desenvolvimento BNDES, a joia da coroa da economia brasileira, foi ministro das
Finanças da petista Dilma Rousseff.
Também não é um governo tecnocrata, que conseguiu
atrair as melhores cabeças.
Com meia dúzia de exceções, a qualidade técnica das pessoas é baixa. O Ministério da Educação, por exemplo, foi ocupado por educadores que se destacaram nas redes sociais e em blogues pelas suas teses radicais e autodidatas. O novo responsável pelo ENEM, a prova que dá acesso ao ensino superior, já defendeu publicamente que os professores no Brasil "pregam o aborto, incesto e pedofilia."
Finalmente, está muito longe de ser um governo dos
puros. Alguns ministros e pessoas próximas a Bolsonaro, incluindo a própria
família, ocuparam as manchetes dos jornais nas últimas semanas com suspeitas de
corrupção e casos de improbidade administrativa e de fraude. E em nenhuma
destas situações Bolsonaro tomou uma posição de força, de líder, ao afastá-las
enquanto estivessem a ser investigadas.
E Agora?
Nos primeiros meses o Governo deverá anunciar medidas
significativas, algumas delas durante o Fórum Económico Mundial, em Davos, na
Suíça, ligadas à reforma da segurança social e do sistema tributário, à manutenção
(ou não) do subsídio ao óleo diesel para os camionistas ou à privatização de
empresas e infraestruturas públicas. Gerarão alguma empolgação.
Mas estes anúncios não deverão conseguir mascarar os
riscos inerentes a este governo.
A comunicação entre os três grupos é gaguejante, como
se viu logo na primeira semana quando Bolsonaro anunciou um conjunto de novas
medidas económicos e foi humilhado por um secretário de estado que, a pedido do
Ministro da Economia, desmentiu-as todas em público no mesmo dia. É como
António Costa apresentar, de manhã, o novo aeroporto do Montijo e o Secretário
de Estado das Infraestruturas dizer, à tarde, que afinal vai ser na Ota.
Por isso, os maiores riscos deste governo não advêm do
tamanho de criança do vocabulário de Bolsonaro nem da sua feição intolerante. O
presidente é apenas um ser "ignorante, abanando com a cabeça que sim"
(como Eça de Queiroz descreveu a Assembleia da República). Alguém que preza o
escapismo e a desconversa para disfarçar as suas ignorâncias. A maior ameaça é
a possibilidade do governo começar a esfarelar-se por dentro - conflitos
internos, duplicação de funções, falta de comunicação, adoção de medidas
inoperantes, casos de corrupção.
Se a sua 8.ª maior economia tornar-se ingovernável, o
mundo será afetado. E Portugal necessariamente também.
* Rodrigo Tavares é fundador e presidente do Granito
Group. A sua trajetória académica inclui as universidades de Harvard, Columbia,
Gotemburgo e California-Berkeley. Foi nomeado Young Global Leader pelo Fórum
Económico Mundial.
Etiquetas: Bolsonaro, Brasil, Governo Brasileiro, Rodrigo Tavares